segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

... se eu roubei...

Se eu roubei,
se eu roubei teu coração-ão...
é porque...
é porque te quero bem...

Se eu roubei,
se eu roubei teu coração-ão...
é porque...
tu roubaste o meu também...

[extraído de uma velha cantiga de roda]



Pelas frestas a luz filtrava-se em binários. Sombra. Sol. Listras esbarrando sobre seu corpo curvado. Fugindo num relance da testa franzida. Ar pesado arqueando suas costas. Um ar rarefeito em seus pulmões... lentos... Pulmões geneticamente talhados. Á perfeição. E ainda assim... esse ser perfeito... era imperfeito para o Mundo em que agarrava-se a viver...

Um lobo que teimava em bandear com os cordeiros. Uma fera desacorsoada, amansada, presa em seus novos votos... Em suas novas convicções... Numa fé... Num amor... O amarelo de sua íris cintilando no escuro me lembra um anima de zoológico... Sim... farejando seus dias acabarem rumo à noite final, sem saborear mais o gosto de estar vivo...

Tinha sim um lugar, num mundo ligeiramente tangente àquele que ancorara seu coração: era uma arma. Uma arma biológica - um assassino. Feito para rechaçar ameaças... algumas antes mesmo de terem chance de se mostrarem... Mas agora... Agora essa arma filosofava. Ponderava objetivos. Sentidos. Seu passado. O futuro.

Onde estava a labareda incontida de seus olhos? A onda arrebatadora de seus impulsos?... Recostado, seu rosto de porcelana imóvel se envolve em espirais de fumo ambarado. Os lábios tocam o cigarro e tremem de leve. Macio... como tantos beijos que já roubara, e alguns que ganhara sem aviso, sem violência... Morangos... Dois azuis... Dois dourados... Fechou o olho com tanta força que linhas sulcaram seu rosto e seus longos pêlos da sobrancelha se eriçaram num viés quase deitando-se contra a quilha do nariz.

Nos dias que se passaram tornou-se solitário... um animal moribundo que retrae-se com sua enfermidade para longe... Trabalhava com afinco tão logo havia som de obras... Comia de pé entre uma tarefa e outra, no pó e no Sol... Conseguia conversar, até mesmo sorrir... E quando recuavam de volta a seus lares... Subia a seu esconderijo... Se deixava ficar, em silêncio total... Escondido de todos, exceto de si mesmo... Carregando todos eles em si no apertado sótão da Igreja...

Drako... Amber... Ace... Uriel...

Troy... Anamae... Ike... Miguel...

Tantos...

E um...

Kuroi...

Teria de matá-lo... mas... e Drako?... Era tudo tão lógico. Tão correto - tinha que acontecer. Inevitável. Tão próprio: heróico - sim, abster-se de si para o bem do Todo... Rangeu os dentes. Tentou caçar estrelas através da telha afastada. Pensamentos debatiam-se em seu crânio - uma revoada de corvos. Asfixiante... Tinha que ceder... tinha que ser desapegado... acatá-lo...

Um gosto salgado na garganta. Atrás do nariz... Fungou e riu. Fogos de artíficio num telhado... O motor de Fenrir... Cores de fogo num horizonte banhado de mar... Uma lareira, um corpo ficando gelado... O medo, como jamais tivera... De um jeito novo, profundo e aterrador... suou frio... Aquela voz baixa e arranhada entremeara-se contra ele... Escalara sua alma... Fincara raízes no cerne negro e vermelho que era seu centro isolado e duro... E o erguera de encontro ao Mundo... Ele pudera finalmente ver... Sentir... Pensar... Viver...

Recebera tudo isso sem ter pedido nada... Por que?... ... ... Então... Lentamente... um raciocínio sussurrou abalando cada fibra dos músculos esguios... Algo que jamais pusera em palavras... Talvez jamais tivesse percebido assim... Sua pele se arrepiou quando entendeu...

A quanto tempo o outro o amava?...

Apaga-se tudo, zonzo... Foca os dedos... ainda derramavam suas lágrimas vermelhas sobre o madeirame... Havia esquecido-se das talas...

Marcas no chão como pétalas fulgurantes... Pensou em tudo com um sentido pungente de gratidão e uma falta tão profunda em si como se estivesse no enterro de todos eles...

E desceu...

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

... a maçã de Asgard e o Lobo...

Wherever you are
You will carry always
Truth of the scars
And darkness of your faith

Slowly move on
How did we get to here
It all went wrong
Gravity claiming all your tears
Everything looks so much better now
Looks so much better now (...)

You have no right to ask me now
You were never that around
And I have missed

Reality daytrips
And your suit me, suit me ways
Turn out the light switch
We've been awake for days
And no one's coming round here no more
No one's coming round here (...)

You have no right to calm me down
You were never that around
And I have missed
I have missed

Cold contagious
All the mighty, mighty men
What you save is
What you lose out in the end
Cold contagious
Cold contagious

Paint your perfect day
I don't mind this
I'm better off, by the way
Deeply grounded (...)

Cold contagious
All the mighty, mighty men
What you save is
What you lose out in the end (...)

[Bush - Cold Contagious via FoxyTunes]



Uma sucessão de dias praticamente perfeitos. O mais possível para mortais. Sua moral estava tão elevada, que ele sentia-se muitas vezes obrigado a pausar tudo e firmar os pés no chão... Então, coroando isso, ela... Improvavelmente, ela - ali, à espera, desvendada num abrir de portas do velho elevador... Amber... O nome vibrava nele... Como uma represa que tenta conter o maior dos dilúvios... Como o brilhar vermelho do fruto proibido a um faminto... - haveria como negar-se?...

De tantas coisas gigantescas e pesadas - puro instinto - que ele havia aprendido - onde encaixava-se Drako e ela? Ou sua nova família?...

Sua mente, por mais que soubesse por programação todas as belas palavras... por mais que as vezes, permitisse dizê-las, apesar de sentir-se vulnerável e tolo... por mais linhas que tivesse deixado correrem de seus dedos ao vazio compreensivo da Rede... sua mente, não estava preparada para isso... não sabia o que aplicar... como lidar com isso... Uma espada não sabe amar, consolar ou proteger... mesmo que tenha dito ao pequeno: eu o protejo...

Mas ele era capaz de sentir... Entregando-se sem coleira e uivando muito alto ele contou aos Céus o que era isso... O coração parecia não suportar... Seus pensamentos fugiam, frívolos, de qualquer responsabilidade, pois ele era todo aquele sentimento novo e imenso - felicidade...

Agora percebia-se invulnerável, conquistara algo, não sabia bem o que, que lhe fazia destemido - uma certeza ardente de que poderia mover o Universo e que tudo tinha de acabar como aquele momento - neste fulgor quente e eterno, que transpassava seu peito e transbordava em seu olhar. Sim, ao final, seriam todos felizes como ele...

Quando o esculpiram com esse DNA de quimera, misto de tantas coisas e daquele serzinho chamado Zero, quando lhe treinaram, quando o enviaram para simplesmente matar, sem perguntas, sem motivos, alguma vez preveram o que lhe acontecia agora?...

A fera chamada Sete, ou Ash, ou Fenris'úlfr, à mercê somente de si mesmo e da orientação destes que ele seguia... Que elos estavam o restringindo? Que comando, que poder? Que Deus estava disposto a alimentar sua fome crescente? - o amigo... sim, ele dava de si pedaços cada vez maiores... E esta mulher, insensata, que não o conhecera, dispusera-se a pôr a mão entre suas mandíbulas cruéis...

Era bom estar com ela... Ouvir-lhe as risadas. Ver seus movimentos. Escutar palavras desconhecidas para ele até então... Por mais que tivesse sido amado, jamais haviam lhe confessado nada assim... Alguém o chamava contra si e dizia - olhe para mim e me deseje, eu ficarei feliz... Nem a Srta. Lunia, ou sua escrava, ou aquelas pequenas crianças, ou seu grande amigo...

Teve medo. Aproximou-se com cuidado. Sabia que era perigoso a todos - Humanos eram suas presas, não seus iguais... Sabia que não saberia como reagir. Aquilo era novo demais. Mas estava encantado com a oferta. Maravilhado. Todo seu ser pulsava descontrolado, um tom muito acima do normal. Assim, jogou-se contra essa voz que o seduzira, abandonando todo o cuidado que jurara ter - sua própria corrente com que firmara-se na esperança de deixá-los seguros...

A possuiu, e isso o fez forte e intrépido, isso o fez andar passos adiante, distanciando-se daquela cadeia partida que era para o Lobo... Segurando-lhe a mão, viu-se um quase-humano nos olhos dela. - tinha que ser, ser o correto para ela, como ela lhe dizia... Uma fábula que ele acreditava e na qual estava escrito que destruiria tudo que lhes faz mal, engoliria a própria guerra e a discórdia, e assim, teria um lugar ao lado deles... Poderia correr livre pelo Mundo Novo dos sonhos de Drako... Nada os magoaria mais...

Porém, a mágoa veio. Foi a besta de olho de Lua, quem revidou as confissões dela. Falando-lhe com um rosnar incontido, sem rodeios. Com a pouca lábia do Lobo de sentimentos furiosos e primitivos, intensos como o cheiro do seu sangue, como o poder que carregava em suas veias, ele a castigou com a verdade...

Conhecer, nem sempre, é fácil... Muitas vezes, é duro. Como as mordidas daquela boca que ela beijara tantas vezes. Omissões e palavras dúbias, teriam mantido a fantasia duradoura, teriam lhe dado tempo - teria sido Humano... Um animal não conhece esse expediente, no entanto. É sincero em seu rancor e em sua estima... E ela agora entendia em que grau ele o estimava... e como lhe era fiel, ou não?! Sua fidelidade não é traduzível. Multiplicidade, dissera-lhe... Escolha, cobrara-lhe... E aquele vil coração de fera, desamparado, não pôde lhe desmentir, nem arrazoar, ou chegar a qualquer acordo, a qualquer combinação de palavras que explicasse, que reconciliasse...

Quase não quis recolocar em si mesmo aqueles grilhões. Sua aventura o desregrara... Difícil não usar sua força para manter o alvo de seu desejo. Não queria deixá-la ir, mas agora podia entender que jamais deveria ter lhe pedido que ficasse. Mesmo assim - tão terrível deter-se, libertá-la, afastar-se dela... Uma tortura quase ancestral... Em si, uma fúria e uma amargura crescentes.

Isolou-se - ele mesmo era Tyr, o Aesir e Fenris, o Lobo. Arrastou-se contrariado para a única caverna que lhe detinha: sua solidão... Rasgava-se por dentro e não tinha armas para lutar... Jamais sentira essas feridas antes, bateu-se contra aqueles tijolos, enlouquecido, despreparado... A dor de seus ossos não vencia a outra dor, intocável, inextingüível... Mas enganara-se de que estava só - e quando o viu, ah!... Fera indomada, espírito sem sossego, pulou sobre ele e abocanhou-lhe a alma, sôfrego, faminto... extenuado...

E como animal tolo, que tira o sangue do dono e depois entristesce, assim ele, só depois, perceberia-se do golpe que abatera sobre aquele que agora podia denominar "amado"... Mas... Lobos amam o mesmo amor dos Homens?...

Você juraria que ama o mesmo amor de todos os Humanos?...
Igual para cada um que está em teu coração?...