sábado, 7 de março de 2009

... me ensina...

[editado em 15 de março]

Quero fazer deste texto uma homenagem... Alerto que é algo estritamente pessoal. Se quiser ler, tenha um pouco de paciência... e discrição...

Pelos lábios de minha mãe eu soube que já fui um dia uma menina que cantava para desconhecidos... Dançava para os adultos nas reuniões de família... Tinha um sorriso encantador e gargalhava facilmente... Eu pertencia à euforia da vida, como as rasantes das andorinhas, o desabrochar das flores, as revoadas de borboletas e o nascer do Sol...

Minha memória não ajuda muito, mas sei que aconteceu... Fiapos de imagens e sensações... Mas o que pesa em minhas lembranças de mim mesma é o imenso período em que tudo se turvou... Onde cada luz foi lentamente apagada. E minhas pequenas relíquias de criança foram quebradas, uma a uma - não creio que intencionalmente, mas só por descuido... e um pouco de ódio, talvez. Mágoa... Aquela pequena fêmea de cores vibrantes e presença fustigante foi murchando e enlutando...

Até quando agüentamos definhar e nos perdermos?... Qual a medida? O que nos faz deter a degenaração ou deixá-la nos jogar à cova que cavamos, dia a dia?... Houve um ponto, e não recordo a data ou a idade, mas sei que meu sangue ainda não tinha vindo às coxas, isso eu sei. Houve um dia em que fundei, ou incitei-o a formar-se... Um condensamento de tudo que se ía... um guardião do significado de estar viva...

Assim que o invocava para mim, o sentia, em minha mente. Tangível e visível. Audível em seus rugidos e gorgolejares ronronantes. Lustroso e negro como um veludo do véu da noite. Meu animal espiritual : totem, guia, signo. Se estivesse sozinha ou desamparada, sem força ou sem coragem, ele vinha soprado por meu coração. Bafejando liberdade na respiração intensa como seu olhar, contaminando-me com sua força inexpugnável de predador, emprestando-me essa confiança desafiadora de quem só consegue viver arriscando-se a superar, a vencer...

Pontualmente me pôs de pé, me fez erguer a cabeça apesar das lágrimas, me puxar de um cansaço anormal para uma menina. A fadiga de pensar tanto em morrer. Explodindo em palavras macias e incisivas, ele convencia minha parte mais frágil a dar chance aos dias. E a mim mesma. E quando tudo era só cinza... sua exuberante ânsia de viver transformava o Mundo que eu passava a ver pelos "seus" olhos.

- Você vai conseguir. Somos um. Tente, com mais gana!

Minhas pernas e pés doíam, e eu sorria, pois ia treinar até correr mais que meus primos. Subiria sim, aquele muro alto, apesar do frio na nuca trazido pela fobia. Apesar do meu corpo pequeno e leve, eu protegeria sim os menores sendo absolutamente selvagem em meu destemor.

Seu chamado profundo, é uma conexão que - estranhamente - me resgata não para dentro de mim mesma, mas sempre para fora. Encontrá-lo num momento ruim ou simplesmente estagnado, é garantia de ser puxada de volta ao Mundo, sacudida por uma tremenda energia. E respirando em seu ritmo, ser impactada por todos os detalhes, desperta para a Vida. Me sinto, como ele, mergulhada no enorme corpo de Deus, cravejado de coisas extraordinárias, cada ser como uma jóia, cada fenômeno como um milagre... Me ilumino em sorrisos e minha mente verte límpida, inspirada...

- Não vamos cair. Escuta como bate nosso coração? Forte, bravio, vencedor! E o céu, tão vasto e azul, tão longe, mas você o sente chamar, não? Vá, vá adiante, ele grita. E as folhas, o vento? Saúdam-te como irmã, te contam seus segredos e suas aflições... Vem! Corra comigo! Nós temos um lugar e temos um legado a construir!

Em todas as crises... Fiel...

Numa brincadeira de adolescentes ele surgiu com um nome... De uma vez, eu lhe inventara um passado. Ganhara um povo, ao qual pertencia por amor. Família... Um rosto com feições de gente, marcando seus próprios dramas... Deixando cair suas próprias lágrimas ou urrando sua própria ira... Como se fôsse recortado de mim, de repente, ele falava aos meus amigos. Tinha um Mundo só seu agora, mas, controverso que seja, ganhara o meu. Não era mais algo íntimo e velado. Estava revelado para um novo séquito de olhares e mentes... Lutava em linhas sobre o papel. Posava em retratos de grafite. E sua voz ecoava de mim. Através de meus músculos ele se encenava...

Tornei-me além de sua narradora, sua espectadora, sua fã.

Aprendi muito... Se nos arriscamos com coragem, realizamos o que se achava improvável... E se falharmos, não devemos temer: temos forças para deixar para trás e pular para frente. Voltei a não me constranger mais ao me expor, a ser extremamente honesta com os que me rodeiam. Acreditar outra vez nas pessoas, deixar-me ser conquistar pelo brilho de um olhar, tomar exemplo na resitência de uma alma inquebrável. Não repudiar mais aquilo que me é tão novo, diferente - buscar respeitar, aceitar e até mesmo amar essas desigualdades, ver nelas a multiplicidade que enfeita o universo, e o torna infinito de possibilidades, misterioso e fértil de futuros e novas verdades, novos caminhos. Com ele motivei-me a ter o caráter e a transparência de manter-me eu mesma apesar das pressões de tantas pessoas sem identidade, de tantos que dizem amar para castrar, dos julgamentos de uma sociedade que não limpa sua própria podridão.

Jamais domesticar-me...

Mais de vinte anos... E Ash mantém-me sempre surpresa. E eu o mantenho sempre ocupado - ele nunca me falha. E quando ele também se rende ao silêncio - tenho certeza que os que amo (e que me amam em parte por auxílio dele) virão nos resgatar... E nos prover de um lar e um calor...

até que possamos correr novamente livres...
jogados com paixão no vento...
sem arreios, sob o infinito desse céu irmão...


Meu totem, obrigada... por tanto.

... hóspedes dentro...

Se é verdade que o autor não é o personagem (nem numa autobiografia)... e que o personagem não se limita a ser um reflexo do autor (mesmo que sempre seja marcado por ele, ainda que seja um personagem histórico, biográfico, verídico)... com isto não quero levar a se pensar que o autor esteja estanque do personagem e seja imune a ele...

Pelo contrário. Estou convencida que existe uma "simbiose" entre as duas partes. O grau dessa inter-relação se aprofunda quanto mais longo e intenso o tempo dessa parceria - o tempo que o autor dedica a seu personagem e como.

Ok. Que se diga disso: " - Bobagem! Como algo fictício pode dialogar, relacionar-se, influenciar seu autor?" Respondo: quantos personagens você pode listar que já influenciaram grupos inteiros de pessoas, nações ou mesmo gerações inteiras ao longo do Mundo?

Vamos fazer esse exercício, juntos.

Citarei alguns, tente pensar no efeito que causaram: Superman. Flash Gordon. Indiana Jones. Sherlock Holmes. Cinderela. O Patinho Feio. Hércules. Romeu e Julieta. Hamlet. Rei Arthur. Rocky Balboa. Adiante, vamos incluir: Papai Noel... e vultos como Jesus... e Maomé... - de cujas identidades históricas não duvido, mas que a nós chegaram não como pessoas de carne e osso com quem convivemos, e sim como personagens, figuras de uma narrativa sagrada.

Se usar sua memória, ou um pouco de pesquisa, com certeza fará a lista crescer enormemente...

Voltando ao raciocínio: o personagem retroage sobre seu próprio autor. Isso na medida em que haja uma abertura empática ou um ponto de conexão (mesmo que um trauma) entre eles. Talvez, mesmo a experiência em si, de criá-lo e animá-lo na estória, já traga novas luzes.

Se o personagem tem em si algo que é do autor... que se considere também que o autor jamais será igual após o personagem... E que esse personagem... como uma semente... é jogado ao Mundo... onde poderá germinar em nossos atribulados jardins mentais...

Me diga... quantas dessas sementes modificaram sua visão sobre o Mundo?... e suas perspectivas de vida?...