sábado, 25 de abril de 2009

... chapeuzinho e o lobo...

[2ª edição]


O estrondo grave e vibrante dos motores e do maquinário acessório, com seus pistões e vapores apitando, sente-se até nas vísceras do ex-assassino. Uma pressão trovejante tamborilando em seus tímpanos.

É assim que ele prefere... Por isso veio tateando até refugiar-se exatamente aqui. Toda a agitação de válvulas, gorgulhos de tubulações, revolveres de hélices, assobiar de roldanas e craquelar de engrenagens... dínamos e serpentinas... relógios e foles... toda essa marcha impetuosa de decibéis em vários ritmos e timbres o remete aos campos de batalha, aos becos crivados de balas e gritos, ao troar das bombas - e então ele se sente seguro...

Uma ironia que ele seja o avesso da maioria das pessoas. O silêncio civilizado e a conversa moderada ainda causam-lhe a agoniante sensação de impotência e inutilidade. Contra isso engendrava sempre uma luta encarniçada. Cada vez era como se estivesse se afogando, algo inexpremível pesando contra suas braçadas, impedindo-o de tomar fôlego suficiente. - Para ele, estar naquele estado deplorável de inabilidade era estar vulnerável. Esse era seu instinto. E vulnerabilidade era um convite ao fracasso - o que, para um guerreiro, implicaria em uma das duas coisas (ou ambas): desonra... e morte. Portanto, sem dar-se conta, ele evitava o quanto podia ou debatia-se por dentro a cada reunião prosaica...

Há para ele duas únicas exceções a esse algo que poderíamos definir como "náusea da calmaria". Estar ao lado de Drako - que para ele é como... ... ... (receio que seja difícil demais tentar definir isto aqui, levaríamos um tópico inteiro - e tenho pressa, vejo que algo está para acontecer ali embaixo, você não?) - ou estar sobre uma mulher... Neste último caso a explicação é bem rápida: ele pode então escapar do seu esforço de incluir-se nos domínios humanos, e ser somente o que é, apetites e desejos, músculos e garras, e aquele olhar, ímpar, uma Lua em trânsito, para a qual tem-se de adivinhar a fase. Pois sua alma é um torvelinho tão intenso quanto o amarelo feroz daquela íris.

Enquanto falamos, ele se fecha, a nuca abraçada pelas mãos entreleçadas, forçando a testa contra os joelhos dobrados. As lágrimas não descem. Entalaram-se no caminho e sua mente oscila entre aceitar ou recusar o sentimento que o abate com tanta força quanto um soco em cheio do gigante Weapon, agora extinto. A garganta contorce-se e o choro não concedido explode entre os dentes cerrados com mais gana ainda, num som de tosses curtas e falhadas, dolorido e seco. Se mergulharmos através de seus nervos e atingirmos o cerne em tempestade desse produto de engenharia genética, poderíamos ver uma criança...

Num filme só para si, em cores desbotadas de magenta velho e um bege dourado, ele roda a imagem daquele menino que tinha ganho seu coração. Escuta-o repetindo frases que já ouvira, e seu olhar é tão vivo e presente que o machuca. O vê correr animado atrás da bola disputada com os outros meninos, na ladeira em frente à Igreja, e até mesmo a textura das pedras do calçamento lhe causa a tortura amarga de repensar perdas. As imagens se sucedem e se acha outra vez erguendo o olhar para aquela figura fantasmagórica, que o guiaria através da vastidão tão desesperançadamente branca... sim, justamente viera resgatá-lo quando suas forças o abandonaram e ele caíra... Todos os detalhes... o rosto sorridente como se o saudasse... o boné antigo... as roupas largas e puídas... E ele se levantara graças ao garoto, que iria mostrar-lhe a senda para achar aquele a quem sempre buscaria... sim, fôra a sua Estrela do Norte...

... Uriel...

O nome retomba por ele. Observe como corre o espasmo em seu corpo encolhido. Se estivesse mesmo certo, o que aconteceria?... Mas não. Não se deixaria estar com a razão. Não podia. Havia outra explicação: o Mundo era vasto, e ele só chegara a essa conclusão estúpida por não conhecer a verdadeira resposta. Era isso... Tinha que ser!

... Uriel... ... ... Uriel ao lado de Kuroi...

Não admitia ter tido essa desconfiança. Tem medo que, como naquelas lendas, seu pensamento se solidifique em realidade. Então, está se esforçando em negá-lo. Porque... como ele diria isso ao ex-Soldier?... Como o golpearia com essa notícia, sabendo que reabriria aquela ferida profunda e larga, que nem tinha certeza de estar se fechando?

Não... Ele jamais poderia ter sido insensível à tal nível e imaginar algo assim. Os fatos não podiam ser tão inclementes... era como tripudiar sobre um lutador quase morto...

... mas... quantas vezes, essa mesma crueldade do destino não havia soterrado outros... pelas suas próprias mãos sangrentas, o uniforme reluzindo no brasão da Compania ShinRa?... E seus dedos, levados a essa questão, tremem, como se tivessem nojo e horror de si mesmos, da impressão carmesim decantada no fundo de sua derme... - Sim! - a vida é cruenta e impiedosa, e Kuroi seria capaz de fazê-lo, e nenhum poder, aquele TODO, iria impedi-lo de realizar mais essa injustiça. Sabe disso, pois DEUS jamais o havia alvejado, ou paralisado seu braço, ou lançado-lhe raios ou labaredas apesar de seus crimes. Ele era a prova viva de como os fracos estavam entregues aos fortes nesse Mundo, o quanto careciam de uma manifestação improvável de intercessão sobrenatural para salvá-los. Por mais rezas que gritassem aos céus, quem lhes protegera fôra sempre outros como eles, de carne e osso...

Atormenta-se: que estratégia poderá usar para defender Drako e sua família desse baque - insubstancial demais para ser bloqueado por um escudo, ou refletido com um golpe?... Etéreo demais para que possa esquivar-se dele com ginga, ou contê-lo com o sacrifício de seu sangue. Se pudesse tomar todo o impacto sobre si... Como poderá se interpor a esse dano?

Percebe como ele demora a escutá-la chegar? A grossa espiral de perguntas sem resposta o torna surdo, a princípio, ao chamado dela. Porém, como o Sol renasce a cada madrugada, num degradê de cores suave e contínuo, a voz dela perfura pouco a pouco essa carapaça de dor e dúvida e o atinge mesclando sua alma com a sensação morna de um lar... O rapaz engole a bola de espinhos e lhe responde. Guiada pela sua voz rouca e abafada, ela se aproxima, lenta e atenta, montando para si o quebra-cabeças que era seu companheiro e seus extremismos insólitos.

A vista baça dele enche-se com o vermelho vivo dos cachos de Ane, que escalam-lhe o ombro e emolduram-lhe o rosto de fada. Ela lhe toma a mão, acaricia-o através das bandagens marcadas de escarlate escuro e sienas. Com uma dedicação amável, ela lhe fala sobre um Ash que ele jamais percebera... Seu perfume desabrocha no ar como jasmins ao sereno da manhã, assentando-se languidamente no ambiente saturado de graxas e combustível, e levando consigo uma estranha inquietação ao cérebro sensível daquele macho.

Sob aquele chão trepidante, a poucos centímetros dele, ela tropeça em palavras confessadas, patina nelas ao vê-lo tão perdido e curioso. Talvez esperasse dele outra reação. No entanto, como em outras ocasiões, ele enredava-se numa ansiedade de privação - era como lidava com aquilo - era estritamente neutro com ela, virava as costas às suas graças, amarrava todos os seus impulsos naturais. Uma disciplina que aprendera a cultivar graças à convivência com uma tal Srta. Lunia, tentação para a qual se excluíra sem jamais escorregar. Fôsse como fôsse, recusava-se a pensar nela sexualmente. Fazia-o não por qualquer exclusividade de libido por Drako, ou Amber... Tentava não admoestá-la - crera desde o princípio que aquela criatura exuberante pertencia ao loiro.

Mas palavra a palavra ela o despia dessa idéia. E o cão, a sós com ela, desamparado como estava a bem mais tempo do que poderia remontar, reluta em entender, sentindo cada fibra, desde a ponta de seus dedos decepados até os dendritos de sua massa cinzenta, saturando-se de uma compulsão confusa: desejava interrompê-la puxando-a contra si, acolhendo-a e calando-a com seus próprios lábios...

O toque lembrava-lhe Amber. O companheirismo, a história mesma de terem partilhado lutas, lembrava-lhe Drako. E mesmo suaves, essas memórias evocam uma espécie de culpa inculta e hesitante. Aquilo era errado? Sentir-se assim em sua presença de alguma forma feria-os? Aquele desejo que lhe subia pela virilha e dava voltas em seu estômago e descompassava seu peito eletrizando-o inteiro era desrespeitoso aos dois? A sensação pungente de partilha, de igualdade, de uma certa identificação, poderia ser uma traição? O que dizer daquele leve ciúmes que o intoxicava quando a atenção dela convergia ao amigo loiro, mais forte, mais carismático do que ele jamais seria?

Uma diferença de pressão podia ser sentida, como se um tufão estivesse se formando. O rapaz cor de porcelana fareja nela o constrangimento, a intenção de fuga. Estava acordando e encarando-a a primeira vez e simplesmente não podia deixá-la ir. Sua genética precisa de predador dispara um impulso fulgurante por sua medula - num relampejar ele toma-lhe o pulso esguio e alvo, ancorando-a ali.

A figura frágil e aguerrida, sensual e meiga, detém-se a sua frente, sem protesto. E a novidade desta reação criou uma avalanche de suposições. Escutando-a ouvia o sussurrar de sua mente que lhe dizia que tinha sido tolo, e um sentimento de atraso e de obviedade - ela teria lhe compreendido, ficado ao seu lado?... ela, que não era humana?... ela que era um monstro como ele?... ela que já matara, que era compelida pelo ardor da guerra?... ela que agora abria seu peito orgulhoso às perguntas cinzas dele? ... ele a magoara tendo partido?

Como um hematoma que é tocado, a situação, a cena em si, carrega a ardência de seus desajustes com Amber - e ele solta a ruiva, devolvendo-lhe a liberdade que a outra sempre reivindicara. De repente foi inundado por uma torrente fria de medo: não queria fazer nada que destruisse a tênue aliança que tinha com ela, ainda mais sabendo que ela nutria um sentimento por ele. Isso tornava cada gesto mais significativo, mais carregado que para outros - aprendera essa lição... Ela buscava algo nele, dissera-lhe... Sabia se ele tinha isso? Ou descobriria depois que não e o deixaria para trás, como um pente vazio?... Surpreso, deixa rolar de sua boca uma frase balbuciada, manca. O suficiente para retirar dela o resto de auto-controle e dar-lhe impulso para correr dali.

Ergue-se, seu senso de caçador cintila por seus músculos e juntas outra vez. Contém-se, porém. Capta-lhe as mãos esguias que escondem-lhe os lábios. Some de sua vista, de suas narinas incisivas. Repassa o diálogo curto que travaram. Roça as pontas dos seus dedos umas contra as outras, o tato ainda cheio da impressão daquela pele branda. Sua vontade teima em pedir-lhe que não a deixe só, que a toque, que a enrole em seus braços. Não queria que sofresse. Mas ele as fazia sofrer quando juntava-se a elas, não tinha sido assim?... Tenta acalmar-se: seu pulso está acelerado. Estremece de cima a baixo sacudindo a tensão do corpo. Um rubor violáceo colorira levemente as maçãs ossudas do rosto subindo do peito pelo pescoço. Queria pensar melhor naquilo, mas sequer conseguia puxar o fio da meada. A declaração inesperada de Ane sacudira seu mundo. Está perplexo.

E então... um sorriso. Pode vê-lo, como eu?... É fraco, passaria despercebido à maioria das pessoas. Mas abre-se um pouco mais enquanto as sobrancelhas se arqueiam franzidas e quase se tocam sobre o nariz. Não só isso: desce por dentro dele como uma raiz forte, brilhando como mako na turbidez de sua alma.