sábado, 16 de maio de 2009

... armaduras que jamais caem, falhas nunca defendidas...



There is nowhere left to hide
There is nothing to be done
No people to be saved
No pets we've never named
40 miles from the sun

As darkness craves the mind
We come undone without our pride
No time on the earth to come
All the pleasures just begun
40 miles from the sun

In our coats beneath the layers
Wash my skin of all the hate
We should sleep late
Everything just kind of grates
40 miles from the sun
40 miles from the sun
40 miles from the sun

I need to lose to make it right
I'll confront the stars tonight
I will babble I will bite
You will never know how much you shine
40 miles from the sun
40 miles from the sun
40 miles from the sun
.


[40 Miles from the Sun, by Bush]


Uma flor de pétalas de seda abria-se sob ele. Descansava, quase desmaiado, sobre ela. Duas figuras recortadas contra o chão, três cores em degradê, do branco profundo ao mogno escuro das tábuas largas. A cor de canela quente dos braços delgados e pernas curvelíneas e magras dela, raios de uma mandala. O rosto ainda caiado de pó-de-arroz, fitando o vazio com olhos oblíquos e escuros. O cabelo negro de ambos em ondas e brilhos, misturando-se em curvas como dois rios. A brancura inumana dos músculos dele recortando das sombras sua forma no primeiro plano. Salpicos de tecidos rolando suaves na brisa quente bafejada pelo climatizador. Flores de tecido e resina em pentes e palitos decorativos, retirados um a um, um grande jasmin repousando recostado ao punho grande demais, sujo do sépia imundo de coágulos. Os olhos fechados da fera que dormita, a face acolhida entre os seios pequenos e o queixo pontudo e frágil dela. Armas repousando em cinturões ainda enlaçados no quadril despido, transpassados a um torso já nu, enrolados a uma perna dobrada displicentemente.

Detalhes... Passa-se mais de uma hora sem que nada se desfaça. Ela trai-se: fita-o, de repente, atenta além do que sua compostura lhe permitiria. Emoções trovejam pelo rosto suave. A palma macia recolhe-se, ergue-se como uma serpente e assim desliza no ar até tocá-lo, muito mansa, com medo, no omoplata largo e saliente.

Ele imediatamente enrigesce o corpo e rosna, a garra esquerda já ao redor do pescoço fino da escrava, a mão direita segurando a adaga que a pinicava na altura dos rins. Os dedos dela tremem, depois se forçam contra o relevo abrupto do trapézio. Um milésimo se passa, ou mais, enquanto ele acorda e sustenta um olhar predatório contra ela, como se não a reconhecesse.
- Está cansado e o banho vai esfriar.
- as palavras fortes dão a ela um alívio, como sempre saem duras e impessoais ocultando o borbulhar de seu pânico: pela forma resoluta com que as pronunciava poderiam até ser tomadas por uma ordem.

Desarma-se e volta a olhá-la com seu jeito costumeiro: levemente feroz e perigosamente entediado. Toma a liberdade de mordê-la, farejar-lhe os ombros e lamber-lhe o gosto ambarado de seu suor misturado aos dos óleos perfumados com que se envolvia. Ela geme baixinho e suas mãos geladas tecem nele frases que ela nunca irá lhe confessar.

O ato recomeça, mas diferente - doce. Ainda assim há um limite claro entre eles, que não esmorece nem quando ele lhe ronrona veludosamente por mais, mais! e só o que ela consegue pensar é "Que mais é esse? Como decifrar o que uma criatura como você quer além do que estou te dando???"

E assim acabam entrelaçados sobre um divã, o couro negro reclamando abaixo deles, a cada mudança de peso. Veja, as bocas nunca se encontram. Nos olhos dela nunca submissão ou carinho. Nos dele só a reafirmação da posse, um tom de desejo ou de prazer. Quando a respiração se acalma, ela senta-se sobre ele e revista-lhe o peito marcado de hematomas grotescos.
- Onde estão os frascos com regenerador?
- Deixe assim.

Desde quando ele se permitia ficar debilitado? A resposta a surpreende. E aquele relance de preocupação que ele capta talvez seja o motivo para que ele avance sobre sua guarda aberta, quebrando protocolos implícitos entre eles:
- Você morreria por mim?
- Não.

Um leve crispar de nariz e cerrar de sobrancelhas. O soslaio de um canino enquanto ele bufava algo com desprezo. Então o velho olhar baço, corriqueiro:
- Se você pudesse, me mataria?
- Para que?
- Para ter outra vida.

O silêncio acumulou-se entre eles. A voz dela estocou-lhe:
- Gostaria de ser livre.
- Me mataria?
- Não.

Remexeu-se, incomodado com a seqüência de respostas que não lhe soava coerente. Talvez faltasse lógica. Talvez desconfiasse que estava faltando honestidade. Talvez estivesse simplesmente decepcionado.
- Por que não?
- Adiantaria?
- Se sua liberdade dependesse disso...
- Não conseguiria.
- Mas tentaria?
- Isso é mórbido.

Segurou-lhe com firmeza nos braços e a encarou. Aqueles olhos de fera, amarelos.
- Tentaria?
- Você jamais seria vencido por mim... eu não tenho nenhuma perícia nisso...
- Se soubesse que iria conseguir, tentaria?
- Por um milagre?
- Pelo que fôsse - encurtou, perdendo a paciência - se tivesse certeza de que me mataria, faria?

Ela mergulhou um tempo naqueles olhos claros demais, depois arrepiou-se, tentou descer dali, mas ele continuou mantendo-a a sua mercê. Os olhos puxados perderam-se entre as tábuas do chão. O lábio tremeu um pouco.
- Não.
- Por que?
- O que quer com isso?
- Só responda.
- Não sou suja assim.
- Nem que fôsse conseguir o que mais sonha? - "Suja" a palavra o chicoteava.
- Me tornar uma assassina não é uma opção.

Era assim que ela o via?...
Deixou-a ir, enquanto o núcleo de seu ser enrolava-se em torno dessa pergunta. E das perguntas que nasciam dessa. Não escutou os passos macios dela. Mas despertou quando ouviu-a chamá-lo. Andou devagar, como um tigre entediado, pensando se ela acreditava que ele a mataria realmente. Por que não? Não era o que ele fazia aos humanos? Se ela tentasse algo contra ele... mesmo sem ordens... ele não revidaria?

As pegadas dela evanesciam em vapor. No fim da trilha, sua concubina o aguardava, de pé sobre os degraus de taboão. A banheira rescendia a cheiros alcalinos e perfumes artificiais.
Aproximou-se e notou que ela já retomara seu controle impecável da situação. Retirou os coldres, com dedos lentos em cada presilha, enquanto sua atenção se movia aos gestos dela, despindo-lhe o uniforme.

Retirá-lo parecia dar a ela uma grande satisfação. Por algum estranho raciocínio, ela odiava aquela coisa. Ele fingia ser contra a sua vontade. Mas o comando era seu. E o tecido, que tomava uma textura emborrachada, amontoava-se negro aos seus pés e então, escorria, tornava-se uma sombra contra o chão. Acompanhou-o quando o assassino subiu os degraus e entrou na água morna. A escrava cuidou aquilo com asco, arrepiada, antes de sentar-se na borda e puxar-lhe pelos ombros contra suas pernas.

Encaixou a nuca contra as coxas dela seguindo o ritual. Fechou os olhos amarelos permitindo-se flutuar num mundo de mortos, ordens, rixas e falas dissimuladas. Mesmo a jovem cor de canela diluindo-se em massagens gentis, sabia que era uma questão de obrigação imposta. Aquela doçura era também farsa. Mas ela era sua. Sempre seria, mesmo que o odiando.

Ilusões... erros de julgamento...


[The Slave with a Key - parte 4]

... crueldades pequenas e grandes...


Relanceou o olhar sóbrio e descrente pela vastidão do seu loft, espaçoso e luzente, com tudo que ele conquistava e escolhia no catálogo. O suave aroma da madeira no taboão do revestimento. Flores em arranjos. E aquele perfume do corpo dela... rescendendo de cada objeto...

Estava particularmente indisposto e inquieto. De volta à sua gaiola dourada. Cheio de perguntas as quais ninguém respondera. Mas sobre as quais fôra questionado.

O farfalhar de seda brincou no labirinto de seu ouvido e a orelha moveu-se, triangulando a origem do som, batendo-se de leve com a insistência do ruído macio. Fixou o olhar exatamente no ponto de que ela emergeria, por trás da estante apilhada de vinis e bonecas de gueixa. Como o Sol ao nascer, foi camada a camada de cor cintilante e viva que sua concubina se revelou. Cuidou-lhe os traços conhecidos, sob a maquiagem ostensiva e icônica. Então ela abriu um leque, milímetro a milímetro, e o fez dançar em harmonia com seus próprios movimentos, num malabarismo que o hipnotizava-o de pé, no primeiro passo ainda.

A peça de tecido dourado e bordados negros parecia um animal adestrado brincando entre os dedos pequenos dela, contrastando em fulgor com a brancura do pó-de-arroz. Os requintados desenhos se borravam nos rodopios. Sim... voava como um pássaro... mas não ia muito longe, pousava de novo na ponta daquelas unhas... subia e caía... sem conseguir chegar a lugar algum... um pássaro... aleijado...

Só percebeu sua tensão quando ela já tinha lhe escalado todas as vértebras e inclinado seu pescoço para frente e seus ombros tinham recuado preparando a reação elástica do bote. E quando ele chegou sobre a garota, o fez de tal forma que alguém poderia pensar que ele entrara na coreografia - exceto ela mesma.

Mas não teve tempo de reagir. Sequer teve um instante de pausa, e quando ela abafou seu grito de espanto, ele já tinha terminado o ataque. Viu quando ele apanhou o leque no ar e o esmagou na garra fechada em punho ao tocar o chão sem som. Os restos de osso e laca nevaram sobre seus cabelos e seu rosto atônito. Ele a encarou enquanto ela segurava a respiração e se controlava para enfrentá-lo. Rasgou a bela barbatana de cetim teatralmente, como para marcá-la, lentamente, efusivamente, e pedaços entrecortados de uma cena de família, rostos alegres, crianças correndo, andorinhas, árvores nodosas e torcidas como bonsais, rolos de nuvens, lamparinas, e um brumoso vale de cumes verdes, adejaram ao redor deles. E morreram entre as botas empoeiradas e os pés pequenos e descalços, que quase se tocavam - pareciam mesmo, agora, restos mortais de uma ave desmembrada...
- Podia ter dito simplesmente que não gostou. - ela sussurrou a ele no seu tom rotineiro: monocórdico, de um respeito afrontoso e uma serviçalidade sarcástica - Vou limpá-lo para seu banho, a banheira já está cheia e a água na temperatura que prefere.

Agarrou-lhe o pulso assim que ela lhe tocou para desnudá-lo. Puxou-a contra si, seco, e aquelas pequenas maldades lhe aguçavam os caninos. Aquilo era um ato de beligerância entre eles: obrigá-la a aturar-lhe o corpo ainda coberto das suas vítimas... Como se a obrigasse a compartilhar o mesmo destino dele...
- Seja digno. Lave-se primeiro. - a escrava protestava, sem altear a voz, num cicio sem ódio ou paixão aparentes.

Com aquela face que parecia uma máscara inexpressiva, ele usou sua força, sem feri-la, simplesmente envergando-a. Inclinou-a sob ele desfazendo parte do uniforme numa poça.
- Sou um monstro? - perguntou-lhe entre dentes, e apesar da fúria que lia em seus olhos amarelos, a pequena mulher sussurra-lhe tão baixo, que o áudio ficou ininteligível na gravação:
- Sabe a resposta. E você se orgulha. Gosta de ser o que é: olhe o que faz.
- Se sou uma fera... você é minha presa... Então cale a boca. - rosnou para ela inclinando seus lábios junto ao pescoço fino, cor de canela.

Torceu-a e teve dela suas carnes profundas, com gana, entre arfares de raiva e um prazer que só o redimia pela metade... Havia um nó na garganta que apertava e apertava...

E a esperança que ele jamais se dera conta, ofuscava-se em sua alma de asas cortadas.


[The Slave with a Key - parte 3]

... o coldre perfeito...


Tudo era metálico e assepticamente ordenado. Uma luz apática, fluorescente, deixava todas as coisas cítricas. Uma ou outra lâmpada piscava ao longo do corredor de portas numeradas e códigos de barras. As solas das botas dos outros marcavam a cadência dos passos repetitivamente, e enojavam-lhe. A borracha guinchava contra a lâmina reluzente do piso: tinha ânsias de rasgá-los.

O lugar obrigava-o a lembrar-se sem cessar de que era um Projeto da ShinRa. Uma arma deles. E estava sendo guardado no depósito. Tocou na chave que pendia em sua garganta e puxou-a de lá por sobre a cabeça. A corrente cantou para ele. Um som bonito. O cartão metálico exibiu um flash nos veios de cobre do chip e escorregou para dentro da fechadura e para fora com um BIP musical e um estalido de travas, rotineiro. A porta de contenção abriu-se com um bufar de pistões pneumáticos. Sabia que tinham anotado coisas sobre sua última missão. Seu comportamento...

Hesitou em entrar. Ali era onde o trancafiavam no vazio entre as missões. Talvez um dia não o deixassem sair. Ouviu às suas costas um riso furtivo. Mirou sobre o ombro. Todos o cuidavam, aqueles vários rostos humanos, sem nome, sem nenhum tipo de contato com ele que não fôsse esse protocolo. Silêncio e concentração. Escutava a arritmia de seus corações muito mais alto, agora, que se detivera e os encarava. O cheiro do suor que gotejava de seus corpos. Medo. Sabia exatamente quem fôra. O homem se encolheu.

Eram humanos, não podia... Vestiu a corrente lentamente sobre a cabeça e aceitou. Entrou.

Sua 'tropa de apoio' aguardou entre as paredes maciças até que a passagem se lacrasse uma vez mais e as enormes lingüetas de aço estalassem sinalizando que haviam cumprido sua missão. A câmera de vigilância enquadrou os rostos aliviados, depois arrogantes dos soldados. Eles já voltavam, sem incidentes a reportar.

Um deles não será mais escalado...

[The Slave with a Key - parte 2]

sexta-feira, 15 de maio de 2009

... há quanto tempo?...


O último caíra...

Olhou as garras - escarlates - num gesto mecânico. Aproximou-se, o mesmo passo: vagaroso e absolutamente silencioso, com uma cadência enganadoramente displicente. Ergueu-o com um pulso, sua postura e suas feições demonstrando uma apatia entediada. Encarou os olhos já baços do jovem.


Não mais que quinze anos, calculou, frio. O nome daquele alvo fôra... Jeremias... Jeremias... da família Silberburn... Um protocolo 2, filhote de tubarão - ordem vinculada: eliminar, não aceitar rendição, não permitir fuga. Jeremias...

A imagem chiada e desfocada de um cãozinho sendo atropelado e vozes abafadas.

Piscou. Encarou-o ainda mais fundo, de mais perto, farejando o cheiro que subia de suas tripas ao hálito, do suor salgado e fedorento, da terra. Esperara algo mais... Talvez um derradeiro contra-ataque. Um truque que pudesse surpreendê-lo.

Quando encurralara o garoto, minutos antes, contra aquele muro, algo - um sentimento estranho - fincou-se em seu peito. O que o causara? O olhar de reconhecimento que o rebelde lhe lançara? A palavra muda que ele abortara nos lábios? Já matara outros ainda mais jovens. Mais indefesos. Por que aquilo???

Chacoalhou-o, irracionalmente, tentando acordá-lo do Último Sono. Aquela sensação, como um zumbido de inseto no escuro, dispersa e presente, inconveniente, que não se condensava em pensamento.

Girou o corpo a leste e a oeste: silêncio. Ceifara todo aquele núcleo de terroristas. Era esperado que reabrisse o canal de comunicação com o QG dos Cannibals. Confirmasse sua identidade com a senha da missão. Passasse as coordenadas para que o resgatassem.

Outra vez distraiu-se reparando no cadáver que pendia do seu braço. Um fruto seu. Sem semente alguma. Levantou-o à altura do peito. As sardas num jogo de contraste, brincaram com suas retinas hipersensíveis. Aquele chiado de fatos incoerentes e atemporais rebobinando em seu cérebro. Contraiu-se. As pupilas implodiram numa fenda estreita, depois quase em um ponto mínimo.
- Jeremias... - ouviu-se sussurrar com dor. Não entendia como, gemeu, o fôlego preso quando uma convulsão perpassou seu corpo e grossas águas mornas derramaram-se das maçãs do rosto branco porcelana ao uniforme negro.

Assustou-se. Apalpou a garganta e num surto ancestral jogou longe o cadáver, horrorizado com algo inexplicável. Primitivo, ou infantil. No entanto, o som que ecoou e ressoou em seus ouvidos foi um barulho feio. Cruel. O fez recuar.

Deixou que os metros os separassem. Mas com o rabo do olho cuidou ali. Percebeu onde o esbarrão deixara uma nuvem rala de sangue que interrompia uma das frases contra a ShinRa. O corpo desengonçado chamava-o como um ímã. Ficou de pé, contido, mas não teve como segurar sua mente - e ela se debatia entre vozes em luta. Diziam que deveria tê-lo ouvido. Que deveria ir embora. Enterrá-lo. Livrar-se dele. Um alvo. Um assassino. - Hey, o que manda?...

Estava hiperventilando e fez uma anotação mental sobre os sintomas perguntando-se se estava enlouquecendo. Por que estaria???

Rugiu, quando a pressão parecia que ia desligar seu córtex. O bramido espalhou-se através de mais de um quilômetro de destruição. Agora o silêncio estava em sua cabeça também.

Sentou-se sobre enormes cacos de um prédio bombardeado aquela manhã. Abaixou a cabeça, dolorida. Fechou os olhos. Podia escutar seu treinamento como a estática de um rádio, tentando sintonizar. Tinha cumprido a sua missão, sem falhas, outra vez. Por que se sentia derrotado?

Num perímetro de centenas de metros, restavam só ele e aquele garoto. Estropiado. Ergueu-se e desceu da colina de detritos, ajoelhou-se devagar ao lado do outro. Estropiado. Puxou-o com cuidado, virando-o, até que os olhos secos de pupilas paralisadas focassem o céu cinza. Como se buscasse ajuda, lá. Desamarrou o cantil do cinturão e despejou uns quantos goles na pele curtida, suja e escoriada de um rosto ainda sem barba. Alisou o seu, sem se perceber - também liso. Tentou dar-lhe alguma dignidade. Arrumou-lhe as pernas e cruzou os braços em pedaços sobre o peito imóvel. Teria sido um homem forte...

... Mas não agora... Não mais...

Passou a mão, na verdade uma garra, ajeitando-lhe os cabelos bastos enquanto perdia a sensação de onde estava e quem era. Emplastrou naquele gesto a testa do menino com sangue pastoso e restos de osso e massa encefálica. A vertigem esbarrou nele por dentro com a força de um trem - mal teve tempo de torcer o corpo. A gulfada ácida rebateu-se nos torrões de cimento e ferragens retorcidas perto de suas botas. Jeremias! Era esse seu nome...

Nunca antes... Havia algo muito ruim naquilo que fizera ali. Sons e vozes outra vez, baixas demais e, de repente, seus lábios se crisparam e ele chamou entre os dentes. - Jeremias, hoje não...
Arregalou os olhos quando um arrepio lhe pôs de pé. Cambaleou dali. Mesmo que tivesse a exótica vontade de velar sua vítima. Ou fazer algo por ela. Algo que não sabia o que seria...

O Sol caía...

Parou. Cuidou no chão seu rastro em círculos, desnorteado. Estava atrasado. Muito. Deveria tê-los contactado há horas. Num jorro de adrenalina abriu o canal recebendo um zunido e gritou que viessem apanhá-lo, com a senha e frases furiosas repletas de palavrões dando as coordenadas de um ponto a 5 km dali. Após o 'câmbio desligo' correu daquele deserto assombrado.

Queria ser logo içado e levado para longe.

Para o jamais...


[The Slave with a Key - parte 1]

segunda-feira, 4 de maio de 2009

... nada nesta mão... nem na outra...


The sun is gone and the flowers rot
Words are spaces between us
And I should have been drown in the rivers I found of token lost
And I should have been down when you made me insecure

So break me down if it makes you feel right
And hate me now if it keeps you alright
You can break me down if it takes all your might
'cause I'm so much more than meets the eye

And I'm the one you can never trust
Because wounds are ways to reveal us
And yeah I could have tried and devoted my life to both of us
But what a waste of my time when the world we had was yours

So break me down if it makes you feel right (so break me down)
And hate me now if it keeps you alright (so break me down)
You can break me down if it takes all your might
'cause I'm so much more than all your lies

Hate me, break me down. (so break me down)
Down. (so break me down)

So break me down if it makes you feel right (so break me down)
And hate me now if it keeps you alright (so break me down)
You can break me down if it takes all your might
Because I'm so much more than meets the eye.


[Fake it, by Seether]


Ele a escutou chegar muito antes de vê-la... E seu aroma - aquele que o inebriava tanto quanto antes (ou mais) - foi o que lhe coube: um resto esquálido de tudo que ele sonhara para eles... um efluxo evanescente no ar mecânico de Midgard... que ele reteve para si muito mais longamente que a fração de segundo que, por um acidente, ela dividiu com ele, ao roçar-lhe na corrida para os braços do ex-Soldier...

Correndo, passando por ele como se fôsse um fantasma...

Correndo, endereçando a outro a flor violenta e sofrida do hálito de seus lábios, em palavras desesperadas... em súplicas de que lhe devolvesse os filhos raptados... que os salvasse para ela... - como se aquele assassino de pele de alabastro, postado a uns metros dali, jamais tivesse entrado em sua vida.


Passou por ele - uma onda de impacto - e o turbilhão incandescente e crescente de frases trocadas com Drako inflamou sua vista e seus ouvidos. E, desta súbita Rosa de Hiroshima, Ash recebe o baque e o vácuo. O cérebro desbotado em branco como os olhos cegos das vítimas para aquela luz que lhes é demais, a derradeira. Um instante de total não-existência, como aqueles infelizes que tornaram-se instantaneamente um simples borrão em carbono de suas silhuetas decalcado numa parede...

Então... como se realmente houvesse sido alvejado - como tantas vezes fôra - de uma só e aguda vez foi perfurado por uma dor ardente e tóxica. Os músculos quiseram contrair-se e puxá-lo sobre si mesmo. Arfou, pulmões achatados contra a espinha. Sem perceber-se, tateou o esterno e o peito. Mas o que o transpassara não lhe rompera carne ou ossos...


Desnorteado, testemunhou sem conseguir se negar a ver toda a cena... Apesar daquilo queimar-lhe algum órgão etéreo ou indefinido, ele permaneceu rígido e atento e tomou a missão para si, mesmo sem ser incluido - pôs-se a caminho. E passando por ela... Reteve seus passos... Dedicou-lhe o mais macio de sua voz, não compreendia a pouca importância do seu esforço - não só pelo momento, mas porque se originava de sua boca...

Entre as nuvens, afastado daquela criatura dourada e intocável, outra lhe mostrara o reverso daquela moeda... Veio a ele por sua vontade e jogou em seu colo suas esperanças, com uma honestidade de criança. Resistiu-lhe, hesitando, presumindo uma culpa por um tormento que logo ele perceberia, ser nada além de ecos numa concha oca...

Mas naquele instante - este mesmo, veja! - em que ele
se atira do corrimão da lúgubre Airship aos braços da esplêndida Ane, e seu olhar a abarca firme e confiante, lhe garanto que não o faz por um arroubo de paixão. Todos os seus tenros e frágeis sentimentos pela ninfa de fogo estão lacrados. O que divide com ela naquele momento em que seus corações explodem é o desejo febril de lutar a luta de sua família, de vencer sob as asas dela a distância que podia encolher sua vida, a qual daria sem pestanejar atendendo ao pedido daquela outra mulher...

E apesar da forma que se lança contra os tentáculos serpenteantes que partem a neve até rachar a própria crosta do Planeta, Amber só tocaria em seu nome como um covarde que fraquejava em determinação e caráter... Nem mesmo ter sobrevivido a grave tarefa de defender com aquela draconiana seus companheiros, insistindo em conter o avanço do monstro cujas órbitas oculares eram nada mais que crateras torradas agora, foi suficiente para que tivesse qualquer crédito em repousar depois naquelas ruínas...

Ele era uma ofensa no lar de sua amada, esta noite gelada. Seu empenho kamilaze contra o colosso vermelho tinto como sangue recém cuspido, ou contra o absurdo de um Cetra que empenhara-se em bani-los do Mundo - nada disso cobrira ele com os louros reservados ao seu amigo - ela só lhe coroaria com sorrisos falsos e estenderia sobre ele uma capa de mágoas encarnadas...

Capa que ele, só no fulgor bruxuleante daqueles minutos em que seus passos lentos o aproximaram do batente da porta, entendia agora não ter sido tecida para ele. Havia sido enganado, como por um truque de prestidigitação: tanto o amor, quanto os ciúmes que a nórdica lhe bordara, estavam lá - depositadas ao redor do pescoço de seu amigo. Onde estavam em seu lugar de direito. Por um floreio qualquer de espetáculo, algum entretimento ou hocus-pocus, fôra levado a pensar que o coração dela estava em suas mãos.

Jamais estivera...