Já me perguntaram se esse ou aquele personagem sou eu... ou inspirado em mim...
Um autor não é sua personagem.
A personagem está inserida em outro contexto... Além do mais, ela não tem verdadeiras relações com o Mundo e o Tempo, como seu autor, e talvez por isso e pelo fato de não ser um organismo biológico, como seu autor, não tem todas as dimensões encontradas nele e no restante das pessoas...
Ela estará limitada em relação a multiangularidade própria do que é ser humano. Muito embora sempre hajam conexões, algum pouco ou muito do caráter, das escolhas, sentimentos ou experiências do autor na sua criação...
Até mesmo em personagens de uma biografia... Creio que sempre há um resquício, um rastro do autor impregnando a pessoa documentada - ela não é mais ela mesma... Nem que seja o ângulo de percepção e de interpretação que o autor tem dos eventos em que a pessoa teve participação e que passará à narrativa. Ou a compreensão que ele tem da pessoa que vira personagem e que definirá o quão fiel será a impersonalização. Com certeza, a sintonia entre as duas visões de mundo e os conhecimentos compartilhados (tanto os do Mundo quanto os do eu em questão) ditarão o quanto de desvio há em recontar a história...
Uma personagem não é seu autor.
Sequer se pode dizer, sem algum prejuízo considerável, que ela seja uma parte dele - uma fatia de sua personalidade, ou um feixe qualquer do seu subconsciente...
Porque, ainda que a afirmação possa estar parcialmente certa, não é verdadeira, pois desconhece o valor daquilo que é exterior ao autor como indivíduo e que é apropriado por ele quando dá a luz há uma figuração - aquilo que fecunda sua bagagem interna...
E quando o autor torna-se sua própria personagem?
Numa autobiografia, a isso também eu aplicaria o que discuti acima... Porque quando somos um ser existente, quando estamos inseridos no contexto do Mundo, da vida, estamos constantemente recebendo a influência, a moldura, das nossas relações - e sequer conhecemos uma fração nossa que está também reagindo...
Perdemos isso ao nos tornamos personagem, ao organizarmos isso numa visão - a nossa - ao cortarmos o vínculo com o real, com o Mundo, com a situação geradora... E ganhamos novas facetas, até então desconhecidas e inexistentes talvez, ao travarmos outra relação via personagem, via obra: a relação com o público, a relação histórica com a Cultura...
Assim, um autor é mais e,
ao mesmo tempo,
é menos que sua personagem...
... e vice-versa.