domingo, 28 de dezembro de 2008

... dê-me asas...


A luz pardacenta piscava um tanto... Ninguém se movia... Espalhadas num arranjo de volutas sobre o chão infecto, de um pó em pasta oleosa, as tripas em vermelho e membranas de Dois... quase um ramalhete de cravos encarnados, ao lado de seu corpo estirado...

... sobre ele... os joelhos de Sete... a figura inteira de Sete, mais jovem, mais decadente, mas... vencendo-o... seus dentes coroando a nuca de seu opositor... suas mãos... segurando os pulsos do outro... sua mente... ah!... sua mente... quantas moedas você daria pelos seus pensamentos agora que ele estava claramente dando as cartas de sua vingança?

Cães de rinha... Uma vida cruel e seca... Um recém estava aprendendo isso... o outro... As pupilas do homem chamado de 'Comandante' pelos CANNIBALS iam e vinham pela cena. Era necessária uma decisão. Iria intervir? Ou iria deixar que a luta prosseguisse até que um deles morresse... ou se submetesse ao outro? Sabia o quanto Dois era precioso... e também quanto era genioso e teimoso, dono de um orgulho aterrador... Estava disposto, portanto, a perdê-lo se o jovem vencesse sem tréguas?...

Um guarda engoliu em seco. Um rato passou chiando, de uma cela a outra. Uma aura expandiu-se e retesou o couro de Sete, arrepiou-lhe os pêlos dos braços e do pescoço. Seus olhos de Lua arregalaram-se. Não houve tempo. Arcos de um maravilhoso dourado cambiante uniram os dois corpos e chibatearam pelo chão em direção às grades, afastando os aparvalhados soldados. O som alto zumbiu e as faíscas riscaram em estalos o ar abafado. Os músculos de Sete contraíram-se ao ponto da asfixia. Seu coração parou. A carga corria pelo seu corpo balançando-o e finalmente lançou-o longe e alto.

Um centésimo de segundo congelado na retina absorta do jovem. Dois, erguendo-se, ágil, apesar de tudo, o uniforme recolhendo em proteção os intestinos antes expostos. Então sua própria queda. A espinha aciona-lhe os músculos potentes. Gira o corpo no ar, seu peito inteiro dói e ele não sente mais o pulsar do sangue.

[ ... você entende que está morrendo?... por que não o matou quando teve a chance?... foi uma grande estupidez... percebe agora?... eu não posso te perder... maldito seja... ]

Aterrissa com menos desenvoltura que gostaria, finge bem... mas fato é que logo, não haverá mais vida... Que porra de pensamento tinha sido aquele? Como uma lâmpada prestes a queimar, sua mente oscila, a vista preteando e voltando embaçada para captar o próximo golpe em seu rosto, derrubando-o contra as grades.
- Que erro, vadia... Sem volta, depois de morto... vamos nos divertir juntos... de novo... - a voz do veterano lhe chegava distorcida, e através do borrão de mundo que percebe não pode antecipar seus movimentos.

Puxa o ar com força, afogando-se. Um chute varre-lhe das grades ao chão.
Ele está no fim - veja por si mesmo: o uniforme escorre-lhe lentamente pela pele, dissociando-se dele... Sete está sendo tragado por algo branco e oco, repousante...

Não... apesar da mansidão da morte, há uma gana que não esmorece nele [ ... você não nasceu para isso, miserável... ]. O cheiro de seus dejetos sobe e farpas de lembranças passam através da dissolução de todos os sentidos, de todas emoções... A pupila já parada, fende-se - algo acontece. As caras de sátiro dos guardas que já curtiam os momentos seguintes se retorcem em espanto. As trevas parecem mover-se. Sobem como ondas pelo corpo branco de Sete, espantando o veterano, que não crê em tal resistência.

Aquela batalha já tinha durado mais que o previsto, Dois rosna, acompanhando o borrão pixe que não recobre a nudez do jovem. Sem ter pista do que viria, o assassino investe, chuta-o pelo estômago, erguendo-o num solavanco e gira, a perna desce com uma força absurda.
Partirá sua medula em dois!

Então... tudo preteia. O mais velho gorgoleja sangue, estático. Ainda vê o corpo incrivelmente alvo, coberto de hematomas e muito magro, quase que flutuando à sua frente, inefável e belo como uma pena. Os longos arpões recuam abrindo-se na carne transpassada. Dois abre-se em inomináveis flores escarlates e desaba como um boneco de pano rasgado.

Bestificado, apesar de jamais aparentar, o Comandante volta a si.

A cela enche-se de sons longínquos de passos e vozes aflitas. Sente-se leve. Como se não tivesse matéria. Um rosto de menina, lágrimas...
Tubos e verde... Um garoto branco com um sorriso trapaceiro... Um cristal dormente - uma prisão fora do tempo... Algo familiar e estranho na Lua... Vultos... Grilhões... Algo... como... uma profecia...

Sobre sete, o uniforme negro, aberto como duas grandes asas de penas perfurantes. Ou... como as mandíbulas sedentas da própria Noite, prontas para devorar seu próximo inimigo...

Que visão estupenda - é o que pensa o Comandante - que rapaz impressionante. Subestimara-o.

E quase perdera os dois...



[a Cannibal first meat] - 4

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

... o uivo...



Piscou os olhos... Estava coberto de suor e tremia de uma forma que mal conseguia esconder... Sobressaltado, esquadrinhou a cela escura - nada. Voltou-se para trás - pelas barras, só as trevas, engolindo qualquer horizonte, preteando sua visão.


Quanto tempo ficara apagado?... Conferiu o pulso inchado, agora levemente necrosado. Um pouco pior do que lembrava. Cuidou a câmera. O que estavam esperando? Teria se enganado?...

Fechou os olhos, juntou as mãos, devagar, pois a dor lhe dava náuseas. A testa molhada bateu contra os nós dos dedos. Se você o visse, neste instante, pensaria estar rezando. Fato que ele não conhecia o que era orar, a não ser por uma vaga definição programada em seu córtex durante sua gestação artificial. Um conceito para reconhecimento, não para prática... Sua mente estava se apagando - ele podia sentir, os neurônios mais e mais lentos, querendo dormir por mais e mais tempo, se perdendo, talvez...

A orelha direita balançou no ar parado - uma, duas, três vezes. Os olhos se apertaram. O coração bombeou mais rápido. Um som. Escutou com todas as células de seu corpo, em transe. Sim, travas abrindo. Sim, passos - quantos?! Atenção... Uma vertente fina de suor cruzou a têmpora, atraiu-se a um feixe de cabelos negros e deslizou numa curva muito aberta, antes de hesitar um pouco e engrossar e só então abandoná-lo. Quatro pares de pés. Conseguiu distingui-los, em um tempo maior do que levaria antes.

Sua nuca foi a primeira a retesar-se num estímulo elétrico, ferrenho. Os pulmões subnutridos e feridos, encheram-se num compasso mais ousado e seu primeiro expirar foi um bufar medonho - como um pitbull ao ter a trela solta na arena... Ergueu-se inteiro do assoalho de pedra imundo, a dor quis puxá-lo de volta e - por um segundo - tonteou e sentiu as pernas cambalearem, à deriva. Fechou o punho bom, focou a porta de sua prisão.

A boca do corredor cuspiu os vultos - primeiro, um guarda. Logo após, o Comandante - aquele semblante fechado e frio, como de alguém esculpido em gesso no momento de pisar em seus inimigos. Então... seguido pelo segundo guarda, ele... sim, eriçando seus pêlos e aquescendo seu sangue, ele... o outro... o veterano que o dominara... o responsável por sua humilhação - mas não por sua queda. Tivera o que merecera, assim pensava.

E agora, pagaria ao outro a passagem para o mesmo destino.

Encararam-se através das falhas entre as barras.
- Você está morto. - lhe rosnou o mais velho, seu número era claro no uniforme: 2.
- ... - um sorriso zombeteiro e um olhar de claro deboche responderam. O que pensara disso seu opositor?

O Comandante assentiu e a porta foi destravada, sem palavras ou meandros. Era assim. Num movimento rápido como o estalar de um chicote, Dois adiantou-se pela estreita fresta que era aberta - e estava sobre ele, antes que você pudesse piscar outra vez.

Quicou contra a parede oposta e suas costas latejaram de dor, a fisgada desceu pelo tecido de seu pulmão e cortou o fôlego. Memórias zumbiram em seus nervos, em suas sinapses, como tiros. O punho do outro ainda estava em riste, no ar - como proclamação de um ponto. Estava se exibindo...

Rilhou os dentes - antes que possa acompanhá-lo, veja! - num ziguezague contra as grades e num abrir de garras, Sete risca o ar. Golpe aparado. Novo. Defesa. Outro. Esquiva. Por quanto tempo seu cérebro ignoraria o latejar de seu pulso, o grito de seus órgãos moídos?

Uma máscara de guerra - assim é seu rosto, enquanto anula as sensações e continua em ataque. Não pode parar. Parar é morrer. Risca o outro - mas leve demais. O cheiro de seu carrasco lhe atiça, joga-se com mais fúria. E então... num flash, está imobilizado habilmente por ambos os punhos... Frente a frente com aquele que lhe arrancara a dignidade.
- Gostou de mim, porco? Se apaixonou?- rugiu num sussurro e, por um mero instante, o outro titubeou...

Gostaria de não contá-lo... Mas não posso calar...

A cara do outro resistiu e então cedeu, rasgando-se dos ossos e músculos profundos num som baixo e estranho, a cartilagem do nariz estalando e quebrando-se entre as mandíbulas rigidamente fechadas de Sete. Puxou o próprio pescoço num estirão súbito, arrancando a massa e mastigando-a em despeito.Um jorro quente e abundante de sangue batizou-lhe as feições endemoniadas, num brinde à vingança. Surpreso e afogado em sua hemorragia, o mais velho chuta-o para tomar distância. O grito rouco que lhe sobe é um rugido de fúria que abala os guardas.

Não há rounds, então, não há pausas - Sete gira o corpo no mesmo impulso que o arremessara e volta à toda carga devolvendo-lhe o chute na ferida aberta do rosto com seu peso multiplicado em muitas vezes. Mesmo para o veterano aquilo fôra devastador e ele tonteia... O novato prossegue emendando uma seqüência de diferentes chutes. No peito, nas pernas - Dois pende para frente - na cara, com o baque Dois é jogado sobre suas pernas de novo, nos intestinos - Dois bate de encontro às grades. O estrondo propaga-se pelo metal e anima os dois infelizes de farda que só observam.

Que seja bem entendido e por isso é dito: esta não é uma luta qualquer. Os seres que se enfrentam estão muito acima da potência de um guerreiro humano. São produtos de ponta do maior poder econômico neste Mundo: a Shinra Corp...


Ele sobrevivera anos a fio, primeiro sendo constantemente assediado pelo Número Um... Depois, enfrentando inúmeras missões. Ele era o Anjo da Morte. Pelas suas mãos inúmeros morreram. Executivos traidores da Companhia... Membros do alto escalão de outras nações... Líderes rebeldes de inúmeras facções... Sim. Dois era uma máquina de matar ajustada e experiente e só isso justificaria como ele poderia ainda bloquear-lhe o próximo golpe direto contra sua traquéia, apesar dos danos recebidos. O soco que parte de sua direita seria capaz de estourar um capacete - Sete recebe-o de raspão, seu cérebro descola-se e ele recua alguns passos zonzos. Seus pulmões arranham o ar, a doença é clara para quem ouve. Parado enquanto o cenário oscila em brancos enevoados e sombras, o mais jovem é arrebatado pela explosão da dor que ignorara e vomita contra sua mão. Escuta a risada do outro.

Ah... o olho amarelo está lendo as semanas que passou naquele poço do infermo nas linhas infectas do piso... a risada... aquela lembrança que lhe martelava os miolos tantas vezes cada dia... o suor lhe escorre pelo rosto e banha-lhe o uniforme negro como pixe...

Seu Comandante analisa o embate, gosta do que vê, aprova a sede de sangue que domina o novato apesar do estado lastimável a que está reduzido. Era hora mesmo do número Dois ter um rival à altura. E gela quando ouve o rugido que termina num uivo longo e profundo que sai da garganta rouca de Sete. Os guardas recuam, instintivamente, destravando as armas. As trevas parecem mais densas, parecem mais poderosas. Alguns jurariam que estavam sufocando até mesmo a platéia...

O som preenche a cela e extravasa pelos corredores, chegando ao primeiro nível do Quartel. Interrompe o golpe que estava chegando pelas suas costas arqueadas. E essa abertura é varrida pelas unhas em gancho de Sete. O uniforme do outro abre-se e afloram-lhe as vísceras e o segundo golpe, de canhota, vem debaixo e engata a mandíbula em três perfurações, descrevendo um arco no ar onde o corpo musculoso e ferido de Dois levita antes de ser cravado contra o chão num craquelar de ossos.

Gorgolejar de sangue e impropérios abafados por dentes soltos, um tentar mover-se - frustrado pela queda maciça do corpo de Sete, muito mais leve que antes - e a sensação dos avantajados caninos do jovem abarcando seu pescoço pela coluna. Um átimo perdido, suspenso em todas as respirações.



[a Cannibal first meat-3: editado]

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

... lições no limiar...



Estava sobrevivendo da forma mais vil... Entre os dentes, os pequenos ossos quebraram, e a garganta saciou-se com o sangue morno que não apagava a sede tremenda... os pêlos faziam cócegas em seus lábios rachados, moídos. Ao menos, tirava o gosto de urina que impregnava sua língua...


Terminou a refeição... Exigiu água, num berro de fera, rouco e poderoso, mas as câmeras de vigilância nada lhe responderam. E ela não veio, outra vez - nunca viera. Sequer alguém desceu para rir... Como sairia dali se ninguém viesse?... Sua testa rolou de uma grade a outra e os olhos piscaram, lentos, entregues a mesma seqüência de memórias... Quantas vezes ele relembrara tudo?... Não sei te assegurar, mas creio que milhares...

A dor não importunava mais. Acostumara-se a ela. Em tantas partes diferentes, de tantas formas diferentes: aguda. Quente. Pulsante. Como uma pressão. Como um serrar. Como um inchaço prestes a explodir. Asfixiante. Nauseante... Passara a ser parte dele, mais um sentido de si mesmo...

Abrira-se com as garras para tentar alinhar os ossos do pulso quebrado, dias atrás... Deixara seu uniforme invadir seus músculos para segurar os fragmentos no lugar... A ferida estava inchada, infecta e pontilhada daqueles cabos negros, que transpassavam-lhe pele e carne... Atado feito um marionete...

A febre o levava a planícies distantes... Sonhava em voar - um corvo, que comeria os olhos daquele desgraçado... Outras vezes, via-se em meio a muita neve, enchia com ela a boca, sentia ela limpar o corpo, e seu frio era tão maravilhoso... corria afundando naquele branco sem fim... - um lobo, que devoraria a todos... A febre era seu sono mais profundo e mais doce...

Tremeu a boca de leve nos calafrios, enquanto assava por dentro, e, como um clarão que se torna muito nítido - o pensamento condensou-se numa idéia. E aquilo avolumou-se atrás de suas retinas, tanto e tanto que seus olhos se arregalaram e as pupilas fenderam-se estreitas. Respirou devagar. Clareou sua mente. Dominou as batidas de seu coração. A face enrigesceu-se naquela máscara fria. Um sorriso muito secreto repuxou os lábios arroxeados, só um pouco.

Mirou a lente da câmera. Ergueu-se. Teve de juntar tudo que podia do controle de sua mente para repuxar o corpo à posição de pé, sem que balançasse, sem que se encurvasse - permaneceu ereto e olhou direto através daquele vidro, daquele diafragma. Como uma punhalada. Deu um instante a si mesmo. Precisava que sua garganta não lhe traísse. Tinha que fazer bem-feito, pois estava apostando, talvez, sua última cartada... Encarou quem quer que fôsse que estivesse sentado, numa bela sala, limpa, arejada, confortável em seu assento macio, simplesmente vendo ele se foder, dia a dia, naquela pocilga...

- Aquele filho da puta que me quebrou... não passa de um merdinha!... erraram se acreditaram que ele é melhor que eu!... o covarde se aproveitou por uma sorte... não conseguiria tocar um dedo em mim, aqui, agora!... não teria esse culhão!... não teria essa vantagem duas vezes!... que viesse!... que trouxesse todo mundo prá ver o que eu faria com ele... cachorro que não serve nem prá acabar com o que começou!... não estou morto! ouviu?!...

Puxou fundo um rugido que abalou o silêncio escuro e pesado daquele corredor.

Apontou o dedo na direção de seu espectador, como se o marcasse.

Pronto.

Os dados estavam lançados...


[A Cannibal first meat] - 2

domingo, 14 de dezembro de 2008

... por baixo...



Muito escuro... As pupilas finas se ajustaram, tomaram quase toda a frente do globo ocular, distinguindo as barras que o prendiam ali... Cheiro forte, nauseante... ratos mortos... fezes e urina... - suas fezes e urina.


Fome... Sede... Quantos dias haviam se passado desde que fôra enclausurado ali?... Nem um som... Iriam abandoná-lo ali? Ele veria a morte se aproximando, lentamente, cada vez com mais certeza, até que secasse tanto que seu coração não mais suportasse?...

Mal conseguia se mover... Seus músculos estavam pesados... Pressão baixa... Qual o sentido de tudo isso? Seus olhos se moveram, como se tentasse ler algo no chão ou no ar... Era só porque ele havia baixado a guarda... Um predador não deve depender de mais ninguém... Um predador não tem quem o defenda... Ele fôra ludibriado...

Fazia somente um mês que entrara em treinamento... Talvez mais, agora... E aqui estava, preso e humilhado... humilhado até seu último bastião...

Tocou com repugnância nos quadris magros, cobertos de hematomas profundos, o grito subiu, mas morreu na garganta fechada e nos dentes cerrados... Não o ouviriam gritar mais... Tocou de leve a testa contra o ferro gelado com cheiro de suor e sujeira... Não fôra o primeiro a estar naquele cubículo... Ar parado... Mofo... Fechou os olhos, aturdido e amedrontado... sim... eles o haviam derrotado... ele rolara até o último degrau da hierarquia... esse era seu destino, assim ele pretendia terminar?... ... ... não!... E seu sangue voltou a ferver, o cérebro disparou.

Sob as pálpebras fechadas, o barulho da porta se abrindo atrás dele... Os passos... Um ritmo estranho, sim cada um tinha o seu jeito distinto... Quem seria?... Seu corpo estava exausto... Então, ficou ouvindo o outro se aproximar e fingindo que dormia... Se... se esse que vinha quisesse lutar... teria que se erguer e ir com tudo...

O punho se fechou... Fôra seu primeiro engano: gastar tantas energias simplesmente para superar o treinamento aquele dia... Deveria ter feito só o estritamente necessário... Sem malabarismos... Sem tanto show-off, sem a perfeição de 100% targets cleared e 100% goals accomplished... Não repetiria mais esse erro...

Franziu o rosto branco em muitas pregas ao longo do nariz bonito, quebrado... Queria que a sua mente congelasse ali e voltasse... Mas... Ela continuou analisando... As garras entraram em sua palma, e ele percorreu de novo aquele caminho... O veterano... jamais sentira aquele cheiro antes... Saltou a tempo de evitar o primeiro golpe... A cama onde dormira, rachada ao meio... Teria partido sua coluna... Encarou-o por um milésimo de segundo - desviou-se por tão pouco que sentiu o tecido do uniforme dele roçar-lhe a maçã do rosto. Uma metralhadora de chutes, socos, cotoveladas, uma seqüência tão firme e coesa de golpes que mal conseguia respirar ao esquivar-se sem parar, sem parar - não havia tempo para contratacar, nem brechas, mal tinha espaço para mover-se...

Ali mesmo, revendo, arfava... O suor lhe escorreu pela têmpora ossuda e colou ali uma mecha muito negra... Deveria tê-lo atacado primeiro... Esse foi seu segundo erro... Podia recontar a dor, a sensação do primeiro assalto certeiro - nas costelas... a ardência em seu pulmão esquerdo não era bom sinal, ficou sem fôlego, mas mal teve tempo - o próximo foi na cara, em cheio... tonteou e viu tudo borrado, espirrou sangue pelo nariz e sentiu-o inundar sua boca também... Num impulso de adrenalina, reagiu e o tocou...

Uma só vez... Riscou-lhe a mandíbula com as garras... a carne e a pele se abriram em carmesim e balançaram soltas... Tentara abrir-lhe a jugular, mas errara feio com a velocidade do outro... As gotas de sangue do outro, dançando no ar entre eles... Milésimos... Então puxou a adaga do coldre - não a tempo... Escutou o estralo baixo dos seus ossos quebrando no pulso e gritou... Lembraria sempre aquele olhar... Aquela lascívia com que foi encarado - o deleite de sua confissão de dor, de estar subjugado... Foi como pedir-lhe... Esse... foi seu terceiro grande erro...

Então a sucessão de sua queda... As batidas inclementes de sua cabeça contra aquela parede, os dentes frouxos, socados, de novo, de novo, e o fedor dele quando finalmente deixou o uniforme recuar e o cheiro de seu suor, de seu tesão pestearam o ar... A tortura de não ter mais o controle... de assistir... a si mesmo... A desonra lascinante... Escutar-lhe resfolegar e rir-se dele com palavras chulas, como se fôssem íntimos... como se ele desejasse... Fizera questão de berrar seu êxtase para anunciar aquilo aos quatro ventos... E foi logo... outros chegaram... Logo... o veterano cansaria... É... mas haviam ainda outros para tomarem seu posto...

Revirou-se contra as grades, febril de ódio... E depois de tudo aquilo... ... ... Quando conseguiu se erguer... sozinho já... o que fez?... ... ... Foi procurar o Comandante... Ele sempre impunha ordem... E ele era o único que poderia autorizá-lo a ser medicado... Seu sangue coloriu o piso, como Joãozinho deixava migalhas de sua casa por todo o caminho na floresta... Chegou em sua sala, sabe-se Deus como, e sequer seu traje conseguia tapar-lhe a vergonha de seu corpo ofendido e quebrado, quase nu, de um branco chamativo demais. Os guardas se acotevalavam e riam, diziam chacotas muito baixo, pensando que ele jamais ouviria...

"Sete, você tem a estupidez de se apresentar assim ao seu Comandante?" - o homem dissera-lhe, erguendo contra ele seu cenho frio e enviezado - "... Já deveria saber que um Cannibal tem que estar sempre por cima, ao menos aparentar ser invencível, intocável... E você, soldado... está um lixo... Você não me inspira nenhum respeito... Você parece um civil pronto a ser abatido... Você será tratado como merece... Isso eu lhe garantirei, sempre..."


O último dos seus erros... E aqui estava... A ordem fôra rápida e curta... E mais rápida foi sua descida a este limbo onde o jogaram... Nada de água ou comida... Luz... Sem visitas... Jogado aqui para apodrecer... Ele já sabia, não?, que Cannibals morriam às pencas no treinamento...

Bem... era a sua vez... Ou o que?

[A Cannibal first meat]

... pequenas jóias minhas...

Estranho... Acordar de madrugada, completamente só... Andar pelo apartamento e não escutar o teu ressonar e ir ao teu encontro, ver se precisa de um lençol ou se está suando... se não deixou cair o travesseiro no chão, ou o teu au-au do abraço... Não poder te olhar dormir e retraçar toda a nossa história, desde que tu estavas escondido do mundo, aqui dentro... Não poder mexer um pouco em ti, sentir a seda macia e leve dos teus cabelos, filho, ou a pele rosa dos teus pés, da mão pequena...

Olho prá fora, escutando os pássaros acordarem, cantando, piando, escuto eles conversarem entre si, atentos, escuto seus ninhegos... O Sol de alguma forma está vindo, circunscrevendo o horizonte abaixo de nós, emergindo... as cores com que abre o céu enchem minhas retinas... e começo a ouvir os sons humanos... o metrô, iniciando suas viagens... um ou dois carros na rua roncando motores... E aqui dentro, só o teclar dos meus dedos, tentando registrar o que é impossível...

As palavras... como ornamentos muito sutis, trabalhados à exaustão por milênios... o que elas são a não ser filigranas que nos envolvem e tentam nos ligar ou nos afastar dos outros?... mas nada além disto... que significado teriam em si mesmas?... Elas precisam de alguém que as vista... entende? alguém que seja com elas... por que?... creio que só podem enfeitar o que já é, do contrário, estão vazias... quebram... revelam algo oco e isso é feio - mentir, fingir...

E isso também demonstra que só as uso porque quero que isso que sou e sinto pareçam belos... pareçam interessantes para que você me escute... me leia... para que rastreie tantas coisas que confesso diretamente ao centro, para que ache a fonte... Porque tudo que realmente importa, já está sentido... já sou... E penso em você, que caminha ao meu lado... e a quem amo tanto... Você pode ver isso nos meus olhos, sem que eu despeje uma só palavra?... Você pode ler, sem palavras, tudo que quero de bom para ti, e toda minha saudade, e meu carinho por ti, apenas em cada gesto meu, algo pequeno, algo tímido e velado, você consegue sentir?...

Sozinha aqui penso em tantas coisas e vejo nuvens de um rosa brilhante e um violeta escuro, de bruma, cores que irão se desfazer, sem registro, que irão passar, sem deixar outro rastro que não seja sua efêmera visão em meus olhos insones...

Ah... a posteridade das palavras...

domingo, 7 de dezembro de 2008

... não planeje...

É estranho como o destino nos pega... Traiçoeiro, surpreendente. Injustificável... Ah, sim, eu entendo você, mas espere: eu também acredito em livre-arbítrio. Não imagino que haja um roteiro escrito desde o nosso nascimento até a morte - não torça as minhas palavras, espere um tanto mais...

Temos opções e as fazemos. Buscamos até mesmo projetar nosso futuro. Temos essa ilusão: de que agindo com coerência dentro de um plano, atingiremos nossa meta... Não é assim?... Mas, e quantas vezes, apesar de você ter feito isso, não chegou lá?... Hm?

Aí que está... O pulo do gato. Temos escolhas e pagamos por elas, mas, há algo além: nem sempre o resultado depende só de nosso esforço... Certo?... O resultado também depende de fatores que não podemos controlar e até, ouso mais, que não conhecemos... Não adianta um só jogador num time de 11 estar dentro do jogo prá vencer, hm?...

A vida me parece assim... E olhando daqui, o desenrolar da sina desse jovem de raça artificial, Ash, ou Sete, ou Fenirs'úlfr, como queira, eu vejo que ele também se confunde... A cabeça dele, já pesada, gira e gira e acaba tendo de largar esse assunto, porque há coisas demais urgentes para sua atenção, nesse momento.

O Mundo está decadente... Ok... Sempre esteve, hm? É, eu tenho essa percepção, talvez não seja a sua. Mas agora, esta é a verdade. Há uma razão. Chama-se Kuroi. Muitos querem para si a culpa. Muitos querem para si a solução. Mas... podem eles trabalhar unindo suas sinas para ganhar esta partida?...

Enquanto isso não ocorre, algo incomum atormenta esse ser de pele branca como porcelana, uma pele cujo toque mal parece humano... O olhar dele, ímpar, pousa e pula, da figura dela, à qualquer outra coisa, e de novo, volta, como magnetizado, para a mesma armadilha. Ela parece demais com aquele a quem ele busca. Aquele a quem jurou a maior de todas as lealdades. Empenhou bem mais que um contrato, honra ou belas palavras...

É... Você entende, não? Como é fácil para ele, só, meio insano até, alguns diriam, fraco de fome, de sede, de doença e cansaço, atormentado por uma culpa tão pesada quanto a morte de um inocente e o fim de tantos povos, atormentado por achar-se o furo na malha forte que era seu grupo, que iria salvar o Futuro... Um deslize na direção da gravidade - ela, emulando o loiro ausente em todas as partes, menos dentro dele...

Bem que ele luta contra esse engano... Mas, veja: há escolhas que não podemos fazer, que não temos o direito ou o poder de fazer - são as escolhas dos outros... E algumas vezes... é... algumas vezes, nós somos o predicado dessas opções... O alvo.

Esquivou-se dela e enlaçou-a, ao mesmo tempo - em tempos intercalados como num tango. Forçou-se a resistir quando em tantos instantes seu peito gritara-lhe: dê-me só um minuto de prazer, basta que seja como sempre foi - impulsivo e agressivo - beije-a, abrace-a, durma entre os cabelos dela...

Como um bom espartano: não. Ele manteve-se firme e estóico. Do mesmo, era só fraqueza pelo desespero de tudo. Não era? Havia algo sério e urgente nas mãos dele para cuidar e ele jamais se daria a qualquer luxo antes de ter cumprido o que seu sangue lhe pedia, desde o centro mais íntimo de sua essência.

Ele o achara. Insistira. Trouxera ajuda. E haviam conseguido: Drako estava vivo e entre eles.

O Gran Finale, porém, não chegou da forma coerente que o ex-Cannibal imaginava. Hah! Cá estamos de novo: a grande e imprevisível Roda da Fortuna, que gira conforme os passos de toda uma massa de gentes. Seus mecanismos incessantes trabalharam para que os dois se afastassem naquele momento mais crucial. E para que aquela mulher, Amber, se deparasse com ele quando ele caía...

Ash estava preso naquele olhar, naquela voz caudalosa, a sobrancelha enviesada. E os braços, sim, aqueles braços que o cercavam e o acolhiam, como uma bandagem leve sobre sua carne viva. Ela, que há um dia atrás quisera despejar-lhe o sangue no gelo branco... E ele continuava dando-lhe razão: ela deveria ainda vê-lo como seu inimigo... Pois ele, bem, ele não sabia lidar com sentimentos, não sabia tratar pessoas, muito menos contentar mulheres... Ele pretendia dar sua vida por aquele outro jovem, e não gostaria de ver alguém sofrer com este resultado...

E ainda assim... Enquanto ela o abraçava, ele sentiu-se protegido e nulo, pôde fechar os olhos e ceder seu corpo... Naquele momento singelo, Ash, um dia o assassino mais quotado entre os Cannibals, fôra somente uma alma solitária, frágil, à mercê da indulgência tão doce dela... Nada de grandes objetivos, abnegação, ou treinamentos e armas... Só aquela sensação de aconchego... Somente a vertigem de se sentir a salvo, de poder confessar-se pequeno diante do Todo, indefeso perante o Todo sem angústia...

Amber... como um cantil de água fresca... Acha que ele poderia bebê-la assim?...