sábado, 16 de maio de 2009

... armaduras que jamais caem, falhas nunca defendidas...



There is nowhere left to hide
There is nothing to be done
No people to be saved
No pets we've never named
40 miles from the sun

As darkness craves the mind
We come undone without our pride
No time on the earth to come
All the pleasures just begun
40 miles from the sun

In our coats beneath the layers
Wash my skin of all the hate
We should sleep late
Everything just kind of grates
40 miles from the sun
40 miles from the sun
40 miles from the sun

I need to lose to make it right
I'll confront the stars tonight
I will babble I will bite
You will never know how much you shine
40 miles from the sun
40 miles from the sun
40 miles from the sun
.


[40 Miles from the Sun, by Bush]


Uma flor de pétalas de seda abria-se sob ele. Descansava, quase desmaiado, sobre ela. Duas figuras recortadas contra o chão, três cores em degradê, do branco profundo ao mogno escuro das tábuas largas. A cor de canela quente dos braços delgados e pernas curvelíneas e magras dela, raios de uma mandala. O rosto ainda caiado de pó-de-arroz, fitando o vazio com olhos oblíquos e escuros. O cabelo negro de ambos em ondas e brilhos, misturando-se em curvas como dois rios. A brancura inumana dos músculos dele recortando das sombras sua forma no primeiro plano. Salpicos de tecidos rolando suaves na brisa quente bafejada pelo climatizador. Flores de tecido e resina em pentes e palitos decorativos, retirados um a um, um grande jasmin repousando recostado ao punho grande demais, sujo do sépia imundo de coágulos. Os olhos fechados da fera que dormita, a face acolhida entre os seios pequenos e o queixo pontudo e frágil dela. Armas repousando em cinturões ainda enlaçados no quadril despido, transpassados a um torso já nu, enrolados a uma perna dobrada displicentemente.

Detalhes... Passa-se mais de uma hora sem que nada se desfaça. Ela trai-se: fita-o, de repente, atenta além do que sua compostura lhe permitiria. Emoções trovejam pelo rosto suave. A palma macia recolhe-se, ergue-se como uma serpente e assim desliza no ar até tocá-lo, muito mansa, com medo, no omoplata largo e saliente.

Ele imediatamente enrigesce o corpo e rosna, a garra esquerda já ao redor do pescoço fino da escrava, a mão direita segurando a adaga que a pinicava na altura dos rins. Os dedos dela tremem, depois se forçam contra o relevo abrupto do trapézio. Um milésimo se passa, ou mais, enquanto ele acorda e sustenta um olhar predatório contra ela, como se não a reconhecesse.
- Está cansado e o banho vai esfriar.
- as palavras fortes dão a ela um alívio, como sempre saem duras e impessoais ocultando o borbulhar de seu pânico: pela forma resoluta com que as pronunciava poderiam até ser tomadas por uma ordem.

Desarma-se e volta a olhá-la com seu jeito costumeiro: levemente feroz e perigosamente entediado. Toma a liberdade de mordê-la, farejar-lhe os ombros e lamber-lhe o gosto ambarado de seu suor misturado aos dos óleos perfumados com que se envolvia. Ela geme baixinho e suas mãos geladas tecem nele frases que ela nunca irá lhe confessar.

O ato recomeça, mas diferente - doce. Ainda assim há um limite claro entre eles, que não esmorece nem quando ele lhe ronrona veludosamente por mais, mais! e só o que ela consegue pensar é "Que mais é esse? Como decifrar o que uma criatura como você quer além do que estou te dando???"

E assim acabam entrelaçados sobre um divã, o couro negro reclamando abaixo deles, a cada mudança de peso. Veja, as bocas nunca se encontram. Nos olhos dela nunca submissão ou carinho. Nos dele só a reafirmação da posse, um tom de desejo ou de prazer. Quando a respiração se acalma, ela senta-se sobre ele e revista-lhe o peito marcado de hematomas grotescos.
- Onde estão os frascos com regenerador?
- Deixe assim.

Desde quando ele se permitia ficar debilitado? A resposta a surpreende. E aquele relance de preocupação que ele capta talvez seja o motivo para que ele avance sobre sua guarda aberta, quebrando protocolos implícitos entre eles:
- Você morreria por mim?
- Não.

Um leve crispar de nariz e cerrar de sobrancelhas. O soslaio de um canino enquanto ele bufava algo com desprezo. Então o velho olhar baço, corriqueiro:
- Se você pudesse, me mataria?
- Para que?
- Para ter outra vida.

O silêncio acumulou-se entre eles. A voz dela estocou-lhe:
- Gostaria de ser livre.
- Me mataria?
- Não.

Remexeu-se, incomodado com a seqüência de respostas que não lhe soava coerente. Talvez faltasse lógica. Talvez desconfiasse que estava faltando honestidade. Talvez estivesse simplesmente decepcionado.
- Por que não?
- Adiantaria?
- Se sua liberdade dependesse disso...
- Não conseguiria.
- Mas tentaria?
- Isso é mórbido.

Segurou-lhe com firmeza nos braços e a encarou. Aqueles olhos de fera, amarelos.
- Tentaria?
- Você jamais seria vencido por mim... eu não tenho nenhuma perícia nisso...
- Se soubesse que iria conseguir, tentaria?
- Por um milagre?
- Pelo que fôsse - encurtou, perdendo a paciência - se tivesse certeza de que me mataria, faria?

Ela mergulhou um tempo naqueles olhos claros demais, depois arrepiou-se, tentou descer dali, mas ele continuou mantendo-a a sua mercê. Os olhos puxados perderam-se entre as tábuas do chão. O lábio tremeu um pouco.
- Não.
- Por que?
- O que quer com isso?
- Só responda.
- Não sou suja assim.
- Nem que fôsse conseguir o que mais sonha? - "Suja" a palavra o chicoteava.
- Me tornar uma assassina não é uma opção.

Era assim que ela o via?...
Deixou-a ir, enquanto o núcleo de seu ser enrolava-se em torno dessa pergunta. E das perguntas que nasciam dessa. Não escutou os passos macios dela. Mas despertou quando ouviu-a chamá-lo. Andou devagar, como um tigre entediado, pensando se ela acreditava que ele a mataria realmente. Por que não? Não era o que ele fazia aos humanos? Se ela tentasse algo contra ele... mesmo sem ordens... ele não revidaria?

As pegadas dela evanesciam em vapor. No fim da trilha, sua concubina o aguardava, de pé sobre os degraus de taboão. A banheira rescendia a cheiros alcalinos e perfumes artificiais.
Aproximou-se e notou que ela já retomara seu controle impecável da situação. Retirou os coldres, com dedos lentos em cada presilha, enquanto sua atenção se movia aos gestos dela, despindo-lhe o uniforme.

Retirá-lo parecia dar a ela uma grande satisfação. Por algum estranho raciocínio, ela odiava aquela coisa. Ele fingia ser contra a sua vontade. Mas o comando era seu. E o tecido, que tomava uma textura emborrachada, amontoava-se negro aos seus pés e então, escorria, tornava-se uma sombra contra o chão. Acompanhou-o quando o assassino subiu os degraus e entrou na água morna. A escrava cuidou aquilo com asco, arrepiada, antes de sentar-se na borda e puxar-lhe pelos ombros contra suas pernas.

Encaixou a nuca contra as coxas dela seguindo o ritual. Fechou os olhos amarelos permitindo-se flutuar num mundo de mortos, ordens, rixas e falas dissimuladas. Mesmo a jovem cor de canela diluindo-se em massagens gentis, sabia que era uma questão de obrigação imposta. Aquela doçura era também farsa. Mas ela era sua. Sempre seria, mesmo que o odiando.

Ilusões... erros de julgamento...


[The Slave with a Key - parte 4]

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