sábado, 16 de maio de 2009

... crueldades pequenas e grandes...


Relanceou o olhar sóbrio e descrente pela vastidão do seu loft, espaçoso e luzente, com tudo que ele conquistava e escolhia no catálogo. O suave aroma da madeira no taboão do revestimento. Flores em arranjos. E aquele perfume do corpo dela... rescendendo de cada objeto...

Estava particularmente indisposto e inquieto. De volta à sua gaiola dourada. Cheio de perguntas as quais ninguém respondera. Mas sobre as quais fôra questionado.

O farfalhar de seda brincou no labirinto de seu ouvido e a orelha moveu-se, triangulando a origem do som, batendo-se de leve com a insistência do ruído macio. Fixou o olhar exatamente no ponto de que ela emergeria, por trás da estante apilhada de vinis e bonecas de gueixa. Como o Sol ao nascer, foi camada a camada de cor cintilante e viva que sua concubina se revelou. Cuidou-lhe os traços conhecidos, sob a maquiagem ostensiva e icônica. Então ela abriu um leque, milímetro a milímetro, e o fez dançar em harmonia com seus próprios movimentos, num malabarismo que o hipnotizava-o de pé, no primeiro passo ainda.

A peça de tecido dourado e bordados negros parecia um animal adestrado brincando entre os dedos pequenos dela, contrastando em fulgor com a brancura do pó-de-arroz. Os requintados desenhos se borravam nos rodopios. Sim... voava como um pássaro... mas não ia muito longe, pousava de novo na ponta daquelas unhas... subia e caía... sem conseguir chegar a lugar algum... um pássaro... aleijado...

Só percebeu sua tensão quando ela já tinha lhe escalado todas as vértebras e inclinado seu pescoço para frente e seus ombros tinham recuado preparando a reação elástica do bote. E quando ele chegou sobre a garota, o fez de tal forma que alguém poderia pensar que ele entrara na coreografia - exceto ela mesma.

Mas não teve tempo de reagir. Sequer teve um instante de pausa, e quando ela abafou seu grito de espanto, ele já tinha terminado o ataque. Viu quando ele apanhou o leque no ar e o esmagou na garra fechada em punho ao tocar o chão sem som. Os restos de osso e laca nevaram sobre seus cabelos e seu rosto atônito. Ele a encarou enquanto ela segurava a respiração e se controlava para enfrentá-lo. Rasgou a bela barbatana de cetim teatralmente, como para marcá-la, lentamente, efusivamente, e pedaços entrecortados de uma cena de família, rostos alegres, crianças correndo, andorinhas, árvores nodosas e torcidas como bonsais, rolos de nuvens, lamparinas, e um brumoso vale de cumes verdes, adejaram ao redor deles. E morreram entre as botas empoeiradas e os pés pequenos e descalços, que quase se tocavam - pareciam mesmo, agora, restos mortais de uma ave desmembrada...
- Podia ter dito simplesmente que não gostou. - ela sussurrou a ele no seu tom rotineiro: monocórdico, de um respeito afrontoso e uma serviçalidade sarcástica - Vou limpá-lo para seu banho, a banheira já está cheia e a água na temperatura que prefere.

Agarrou-lhe o pulso assim que ela lhe tocou para desnudá-lo. Puxou-a contra si, seco, e aquelas pequenas maldades lhe aguçavam os caninos. Aquilo era um ato de beligerância entre eles: obrigá-la a aturar-lhe o corpo ainda coberto das suas vítimas... Como se a obrigasse a compartilhar o mesmo destino dele...
- Seja digno. Lave-se primeiro. - a escrava protestava, sem altear a voz, num cicio sem ódio ou paixão aparentes.

Com aquela face que parecia uma máscara inexpressiva, ele usou sua força, sem feri-la, simplesmente envergando-a. Inclinou-a sob ele desfazendo parte do uniforme numa poça.
- Sou um monstro? - perguntou-lhe entre dentes, e apesar da fúria que lia em seus olhos amarelos, a pequena mulher sussurra-lhe tão baixo, que o áudio ficou ininteligível na gravação:
- Sabe a resposta. E você se orgulha. Gosta de ser o que é: olhe o que faz.
- Se sou uma fera... você é minha presa... Então cale a boca. - rosnou para ela inclinando seus lábios junto ao pescoço fino, cor de canela.

Torceu-a e teve dela suas carnes profundas, com gana, entre arfares de raiva e um prazer que só o redimia pela metade... Havia um nó na garganta que apertava e apertava...

E a esperança que ele jamais se dera conta, ofuscava-se em sua alma de asas cortadas.


[The Slave with a Key - parte 3]

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