sexta-feira, 15 de maio de 2009

... há quanto tempo?...


O último caíra...

Olhou as garras - escarlates - num gesto mecânico. Aproximou-se, o mesmo passo: vagaroso e absolutamente silencioso, com uma cadência enganadoramente displicente. Ergueu-o com um pulso, sua postura e suas feições demonstrando uma apatia entediada. Encarou os olhos já baços do jovem.


Não mais que quinze anos, calculou, frio. O nome daquele alvo fôra... Jeremias... Jeremias... da família Silberburn... Um protocolo 2, filhote de tubarão - ordem vinculada: eliminar, não aceitar rendição, não permitir fuga. Jeremias...

A imagem chiada e desfocada de um cãozinho sendo atropelado e vozes abafadas.

Piscou. Encarou-o ainda mais fundo, de mais perto, farejando o cheiro que subia de suas tripas ao hálito, do suor salgado e fedorento, da terra. Esperara algo mais... Talvez um derradeiro contra-ataque. Um truque que pudesse surpreendê-lo.

Quando encurralara o garoto, minutos antes, contra aquele muro, algo - um sentimento estranho - fincou-se em seu peito. O que o causara? O olhar de reconhecimento que o rebelde lhe lançara? A palavra muda que ele abortara nos lábios? Já matara outros ainda mais jovens. Mais indefesos. Por que aquilo???

Chacoalhou-o, irracionalmente, tentando acordá-lo do Último Sono. Aquela sensação, como um zumbido de inseto no escuro, dispersa e presente, inconveniente, que não se condensava em pensamento.

Girou o corpo a leste e a oeste: silêncio. Ceifara todo aquele núcleo de terroristas. Era esperado que reabrisse o canal de comunicação com o QG dos Cannibals. Confirmasse sua identidade com a senha da missão. Passasse as coordenadas para que o resgatassem.

Outra vez distraiu-se reparando no cadáver que pendia do seu braço. Um fruto seu. Sem semente alguma. Levantou-o à altura do peito. As sardas num jogo de contraste, brincaram com suas retinas hipersensíveis. Aquele chiado de fatos incoerentes e atemporais rebobinando em seu cérebro. Contraiu-se. As pupilas implodiram numa fenda estreita, depois quase em um ponto mínimo.
- Jeremias... - ouviu-se sussurrar com dor. Não entendia como, gemeu, o fôlego preso quando uma convulsão perpassou seu corpo e grossas águas mornas derramaram-se das maçãs do rosto branco porcelana ao uniforme negro.

Assustou-se. Apalpou a garganta e num surto ancestral jogou longe o cadáver, horrorizado com algo inexplicável. Primitivo, ou infantil. No entanto, o som que ecoou e ressoou em seus ouvidos foi um barulho feio. Cruel. O fez recuar.

Deixou que os metros os separassem. Mas com o rabo do olho cuidou ali. Percebeu onde o esbarrão deixara uma nuvem rala de sangue que interrompia uma das frases contra a ShinRa. O corpo desengonçado chamava-o como um ímã. Ficou de pé, contido, mas não teve como segurar sua mente - e ela se debatia entre vozes em luta. Diziam que deveria tê-lo ouvido. Que deveria ir embora. Enterrá-lo. Livrar-se dele. Um alvo. Um assassino. - Hey, o que manda?...

Estava hiperventilando e fez uma anotação mental sobre os sintomas perguntando-se se estava enlouquecendo. Por que estaria???

Rugiu, quando a pressão parecia que ia desligar seu córtex. O bramido espalhou-se através de mais de um quilômetro de destruição. Agora o silêncio estava em sua cabeça também.

Sentou-se sobre enormes cacos de um prédio bombardeado aquela manhã. Abaixou a cabeça, dolorida. Fechou os olhos. Podia escutar seu treinamento como a estática de um rádio, tentando sintonizar. Tinha cumprido a sua missão, sem falhas, outra vez. Por que se sentia derrotado?

Num perímetro de centenas de metros, restavam só ele e aquele garoto. Estropiado. Ergueu-se e desceu da colina de detritos, ajoelhou-se devagar ao lado do outro. Estropiado. Puxou-o com cuidado, virando-o, até que os olhos secos de pupilas paralisadas focassem o céu cinza. Como se buscasse ajuda, lá. Desamarrou o cantil do cinturão e despejou uns quantos goles na pele curtida, suja e escoriada de um rosto ainda sem barba. Alisou o seu, sem se perceber - também liso. Tentou dar-lhe alguma dignidade. Arrumou-lhe as pernas e cruzou os braços em pedaços sobre o peito imóvel. Teria sido um homem forte...

... Mas não agora... Não mais...

Passou a mão, na verdade uma garra, ajeitando-lhe os cabelos bastos enquanto perdia a sensação de onde estava e quem era. Emplastrou naquele gesto a testa do menino com sangue pastoso e restos de osso e massa encefálica. A vertigem esbarrou nele por dentro com a força de um trem - mal teve tempo de torcer o corpo. A gulfada ácida rebateu-se nos torrões de cimento e ferragens retorcidas perto de suas botas. Jeremias! Era esse seu nome...

Nunca antes... Havia algo muito ruim naquilo que fizera ali. Sons e vozes outra vez, baixas demais e, de repente, seus lábios se crisparam e ele chamou entre os dentes. - Jeremias, hoje não...
Arregalou os olhos quando um arrepio lhe pôs de pé. Cambaleou dali. Mesmo que tivesse a exótica vontade de velar sua vítima. Ou fazer algo por ela. Algo que não sabia o que seria...

O Sol caía...

Parou. Cuidou no chão seu rastro em círculos, desnorteado. Estava atrasado. Muito. Deveria tê-los contactado há horas. Num jorro de adrenalina abriu o canal recebendo um zunido e gritou que viessem apanhá-lo, com a senha e frases furiosas repletas de palavrões dando as coordenadas de um ponto a 5 km dali. Após o 'câmbio desligo' correu daquele deserto assombrado.

Queria ser logo içado e levado para longe.

Para o jamais...


[The Slave with a Key - parte 1]

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