domingo, 14 de dezembro de 2008

... por baixo...



Muito escuro... As pupilas finas se ajustaram, tomaram quase toda a frente do globo ocular, distinguindo as barras que o prendiam ali... Cheiro forte, nauseante... ratos mortos... fezes e urina... - suas fezes e urina.


Fome... Sede... Quantos dias haviam se passado desde que fôra enclausurado ali?... Nem um som... Iriam abandoná-lo ali? Ele veria a morte se aproximando, lentamente, cada vez com mais certeza, até que secasse tanto que seu coração não mais suportasse?...

Mal conseguia se mover... Seus músculos estavam pesados... Pressão baixa... Qual o sentido de tudo isso? Seus olhos se moveram, como se tentasse ler algo no chão ou no ar... Era só porque ele havia baixado a guarda... Um predador não deve depender de mais ninguém... Um predador não tem quem o defenda... Ele fôra ludibriado...

Fazia somente um mês que entrara em treinamento... Talvez mais, agora... E aqui estava, preso e humilhado... humilhado até seu último bastião...

Tocou com repugnância nos quadris magros, cobertos de hematomas profundos, o grito subiu, mas morreu na garganta fechada e nos dentes cerrados... Não o ouviriam gritar mais... Tocou de leve a testa contra o ferro gelado com cheiro de suor e sujeira... Não fôra o primeiro a estar naquele cubículo... Ar parado... Mofo... Fechou os olhos, aturdido e amedrontado... sim... eles o haviam derrotado... ele rolara até o último degrau da hierarquia... esse era seu destino, assim ele pretendia terminar?... ... ... não!... E seu sangue voltou a ferver, o cérebro disparou.

Sob as pálpebras fechadas, o barulho da porta se abrindo atrás dele... Os passos... Um ritmo estranho, sim cada um tinha o seu jeito distinto... Quem seria?... Seu corpo estava exausto... Então, ficou ouvindo o outro se aproximar e fingindo que dormia... Se... se esse que vinha quisesse lutar... teria que se erguer e ir com tudo...

O punho se fechou... Fôra seu primeiro engano: gastar tantas energias simplesmente para superar o treinamento aquele dia... Deveria ter feito só o estritamente necessário... Sem malabarismos... Sem tanto show-off, sem a perfeição de 100% targets cleared e 100% goals accomplished... Não repetiria mais esse erro...

Franziu o rosto branco em muitas pregas ao longo do nariz bonito, quebrado... Queria que a sua mente congelasse ali e voltasse... Mas... Ela continuou analisando... As garras entraram em sua palma, e ele percorreu de novo aquele caminho... O veterano... jamais sentira aquele cheiro antes... Saltou a tempo de evitar o primeiro golpe... A cama onde dormira, rachada ao meio... Teria partido sua coluna... Encarou-o por um milésimo de segundo - desviou-se por tão pouco que sentiu o tecido do uniforme dele roçar-lhe a maçã do rosto. Uma metralhadora de chutes, socos, cotoveladas, uma seqüência tão firme e coesa de golpes que mal conseguia respirar ao esquivar-se sem parar, sem parar - não havia tempo para contratacar, nem brechas, mal tinha espaço para mover-se...

Ali mesmo, revendo, arfava... O suor lhe escorreu pela têmpora ossuda e colou ali uma mecha muito negra... Deveria tê-lo atacado primeiro... Esse foi seu segundo erro... Podia recontar a dor, a sensação do primeiro assalto certeiro - nas costelas... a ardência em seu pulmão esquerdo não era bom sinal, ficou sem fôlego, mas mal teve tempo - o próximo foi na cara, em cheio... tonteou e viu tudo borrado, espirrou sangue pelo nariz e sentiu-o inundar sua boca também... Num impulso de adrenalina, reagiu e o tocou...

Uma só vez... Riscou-lhe a mandíbula com as garras... a carne e a pele se abriram em carmesim e balançaram soltas... Tentara abrir-lhe a jugular, mas errara feio com a velocidade do outro... As gotas de sangue do outro, dançando no ar entre eles... Milésimos... Então puxou a adaga do coldre - não a tempo... Escutou o estralo baixo dos seus ossos quebrando no pulso e gritou... Lembraria sempre aquele olhar... Aquela lascívia com que foi encarado - o deleite de sua confissão de dor, de estar subjugado... Foi como pedir-lhe... Esse... foi seu terceiro grande erro...

Então a sucessão de sua queda... As batidas inclementes de sua cabeça contra aquela parede, os dentes frouxos, socados, de novo, de novo, e o fedor dele quando finalmente deixou o uniforme recuar e o cheiro de seu suor, de seu tesão pestearam o ar... A tortura de não ter mais o controle... de assistir... a si mesmo... A desonra lascinante... Escutar-lhe resfolegar e rir-se dele com palavras chulas, como se fôssem íntimos... como se ele desejasse... Fizera questão de berrar seu êxtase para anunciar aquilo aos quatro ventos... E foi logo... outros chegaram... Logo... o veterano cansaria... É... mas haviam ainda outros para tomarem seu posto...

Revirou-se contra as grades, febril de ódio... E depois de tudo aquilo... ... ... Quando conseguiu se erguer... sozinho já... o que fez?... ... ... Foi procurar o Comandante... Ele sempre impunha ordem... E ele era o único que poderia autorizá-lo a ser medicado... Seu sangue coloriu o piso, como Joãozinho deixava migalhas de sua casa por todo o caminho na floresta... Chegou em sua sala, sabe-se Deus como, e sequer seu traje conseguia tapar-lhe a vergonha de seu corpo ofendido e quebrado, quase nu, de um branco chamativo demais. Os guardas se acotevalavam e riam, diziam chacotas muito baixo, pensando que ele jamais ouviria...

"Sete, você tem a estupidez de se apresentar assim ao seu Comandante?" - o homem dissera-lhe, erguendo contra ele seu cenho frio e enviezado - "... Já deveria saber que um Cannibal tem que estar sempre por cima, ao menos aparentar ser invencível, intocável... E você, soldado... está um lixo... Você não me inspira nenhum respeito... Você parece um civil pronto a ser abatido... Você será tratado como merece... Isso eu lhe garantirei, sempre..."


O último dos seus erros... E aqui estava... A ordem fôra rápida e curta... E mais rápida foi sua descida a este limbo onde o jogaram... Nada de água ou comida... Luz... Sem visitas... Jogado aqui para apodrecer... Ele já sabia, não?, que Cannibals morriam às pencas no treinamento...

Bem... era a sua vez... Ou o que?

[A Cannibal first meat]

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