sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

... o uivo...



Piscou os olhos... Estava coberto de suor e tremia de uma forma que mal conseguia esconder... Sobressaltado, esquadrinhou a cela escura - nada. Voltou-se para trás - pelas barras, só as trevas, engolindo qualquer horizonte, preteando sua visão.


Quanto tempo ficara apagado?... Conferiu o pulso inchado, agora levemente necrosado. Um pouco pior do que lembrava. Cuidou a câmera. O que estavam esperando? Teria se enganado?...

Fechou os olhos, juntou as mãos, devagar, pois a dor lhe dava náuseas. A testa molhada bateu contra os nós dos dedos. Se você o visse, neste instante, pensaria estar rezando. Fato que ele não conhecia o que era orar, a não ser por uma vaga definição programada em seu córtex durante sua gestação artificial. Um conceito para reconhecimento, não para prática... Sua mente estava se apagando - ele podia sentir, os neurônios mais e mais lentos, querendo dormir por mais e mais tempo, se perdendo, talvez...

A orelha direita balançou no ar parado - uma, duas, três vezes. Os olhos se apertaram. O coração bombeou mais rápido. Um som. Escutou com todas as células de seu corpo, em transe. Sim, travas abrindo. Sim, passos - quantos?! Atenção... Uma vertente fina de suor cruzou a têmpora, atraiu-se a um feixe de cabelos negros e deslizou numa curva muito aberta, antes de hesitar um pouco e engrossar e só então abandoná-lo. Quatro pares de pés. Conseguiu distingui-los, em um tempo maior do que levaria antes.

Sua nuca foi a primeira a retesar-se num estímulo elétrico, ferrenho. Os pulmões subnutridos e feridos, encheram-se num compasso mais ousado e seu primeiro expirar foi um bufar medonho - como um pitbull ao ter a trela solta na arena... Ergueu-se inteiro do assoalho de pedra imundo, a dor quis puxá-lo de volta e - por um segundo - tonteou e sentiu as pernas cambalearem, à deriva. Fechou o punho bom, focou a porta de sua prisão.

A boca do corredor cuspiu os vultos - primeiro, um guarda. Logo após, o Comandante - aquele semblante fechado e frio, como de alguém esculpido em gesso no momento de pisar em seus inimigos. Então... seguido pelo segundo guarda, ele... sim, eriçando seus pêlos e aquescendo seu sangue, ele... o outro... o veterano que o dominara... o responsável por sua humilhação - mas não por sua queda. Tivera o que merecera, assim pensava.

E agora, pagaria ao outro a passagem para o mesmo destino.

Encararam-se através das falhas entre as barras.
- Você está morto. - lhe rosnou o mais velho, seu número era claro no uniforme: 2.
- ... - um sorriso zombeteiro e um olhar de claro deboche responderam. O que pensara disso seu opositor?

O Comandante assentiu e a porta foi destravada, sem palavras ou meandros. Era assim. Num movimento rápido como o estalar de um chicote, Dois adiantou-se pela estreita fresta que era aberta - e estava sobre ele, antes que você pudesse piscar outra vez.

Quicou contra a parede oposta e suas costas latejaram de dor, a fisgada desceu pelo tecido de seu pulmão e cortou o fôlego. Memórias zumbiram em seus nervos, em suas sinapses, como tiros. O punho do outro ainda estava em riste, no ar - como proclamação de um ponto. Estava se exibindo...

Rilhou os dentes - antes que possa acompanhá-lo, veja! - num ziguezague contra as grades e num abrir de garras, Sete risca o ar. Golpe aparado. Novo. Defesa. Outro. Esquiva. Por quanto tempo seu cérebro ignoraria o latejar de seu pulso, o grito de seus órgãos moídos?

Uma máscara de guerra - assim é seu rosto, enquanto anula as sensações e continua em ataque. Não pode parar. Parar é morrer. Risca o outro - mas leve demais. O cheiro de seu carrasco lhe atiça, joga-se com mais fúria. E então... num flash, está imobilizado habilmente por ambos os punhos... Frente a frente com aquele que lhe arrancara a dignidade.
- Gostou de mim, porco? Se apaixonou?- rugiu num sussurro e, por um mero instante, o outro titubeou...

Gostaria de não contá-lo... Mas não posso calar...

A cara do outro resistiu e então cedeu, rasgando-se dos ossos e músculos profundos num som baixo e estranho, a cartilagem do nariz estalando e quebrando-se entre as mandíbulas rigidamente fechadas de Sete. Puxou o próprio pescoço num estirão súbito, arrancando a massa e mastigando-a em despeito.Um jorro quente e abundante de sangue batizou-lhe as feições endemoniadas, num brinde à vingança. Surpreso e afogado em sua hemorragia, o mais velho chuta-o para tomar distância. O grito rouco que lhe sobe é um rugido de fúria que abala os guardas.

Não há rounds, então, não há pausas - Sete gira o corpo no mesmo impulso que o arremessara e volta à toda carga devolvendo-lhe o chute na ferida aberta do rosto com seu peso multiplicado em muitas vezes. Mesmo para o veterano aquilo fôra devastador e ele tonteia... O novato prossegue emendando uma seqüência de diferentes chutes. No peito, nas pernas - Dois pende para frente - na cara, com o baque Dois é jogado sobre suas pernas de novo, nos intestinos - Dois bate de encontro às grades. O estrondo propaga-se pelo metal e anima os dois infelizes de farda que só observam.

Que seja bem entendido e por isso é dito: esta não é uma luta qualquer. Os seres que se enfrentam estão muito acima da potência de um guerreiro humano. São produtos de ponta do maior poder econômico neste Mundo: a Shinra Corp...


Ele sobrevivera anos a fio, primeiro sendo constantemente assediado pelo Número Um... Depois, enfrentando inúmeras missões. Ele era o Anjo da Morte. Pelas suas mãos inúmeros morreram. Executivos traidores da Companhia... Membros do alto escalão de outras nações... Líderes rebeldes de inúmeras facções... Sim. Dois era uma máquina de matar ajustada e experiente e só isso justificaria como ele poderia ainda bloquear-lhe o próximo golpe direto contra sua traquéia, apesar dos danos recebidos. O soco que parte de sua direita seria capaz de estourar um capacete - Sete recebe-o de raspão, seu cérebro descola-se e ele recua alguns passos zonzos. Seus pulmões arranham o ar, a doença é clara para quem ouve. Parado enquanto o cenário oscila em brancos enevoados e sombras, o mais jovem é arrebatado pela explosão da dor que ignorara e vomita contra sua mão. Escuta a risada do outro.

Ah... o olho amarelo está lendo as semanas que passou naquele poço do infermo nas linhas infectas do piso... a risada... aquela lembrança que lhe martelava os miolos tantas vezes cada dia... o suor lhe escorre pelo rosto e banha-lhe o uniforme negro como pixe...

Seu Comandante analisa o embate, gosta do que vê, aprova a sede de sangue que domina o novato apesar do estado lastimável a que está reduzido. Era hora mesmo do número Dois ter um rival à altura. E gela quando ouve o rugido que termina num uivo longo e profundo que sai da garganta rouca de Sete. Os guardas recuam, instintivamente, destravando as armas. As trevas parecem mais densas, parecem mais poderosas. Alguns jurariam que estavam sufocando até mesmo a platéia...

O som preenche a cela e extravasa pelos corredores, chegando ao primeiro nível do Quartel. Interrompe o golpe que estava chegando pelas suas costas arqueadas. E essa abertura é varrida pelas unhas em gancho de Sete. O uniforme do outro abre-se e afloram-lhe as vísceras e o segundo golpe, de canhota, vem debaixo e engata a mandíbula em três perfurações, descrevendo um arco no ar onde o corpo musculoso e ferido de Dois levita antes de ser cravado contra o chão num craquelar de ossos.

Gorgolejar de sangue e impropérios abafados por dentes soltos, um tentar mover-se - frustrado pela queda maciça do corpo de Sete, muito mais leve que antes - e a sensação dos avantajados caninos do jovem abarcando seu pescoço pela coluna. Um átimo perdido, suspenso em todas as respirações.



[a Cannibal first meat-3: editado]

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