domingo, 28 de dezembro de 2008

... dê-me asas...


A luz pardacenta piscava um tanto... Ninguém se movia... Espalhadas num arranjo de volutas sobre o chão infecto, de um pó em pasta oleosa, as tripas em vermelho e membranas de Dois... quase um ramalhete de cravos encarnados, ao lado de seu corpo estirado...

... sobre ele... os joelhos de Sete... a figura inteira de Sete, mais jovem, mais decadente, mas... vencendo-o... seus dentes coroando a nuca de seu opositor... suas mãos... segurando os pulsos do outro... sua mente... ah!... sua mente... quantas moedas você daria pelos seus pensamentos agora que ele estava claramente dando as cartas de sua vingança?

Cães de rinha... Uma vida cruel e seca... Um recém estava aprendendo isso... o outro... As pupilas do homem chamado de 'Comandante' pelos CANNIBALS iam e vinham pela cena. Era necessária uma decisão. Iria intervir? Ou iria deixar que a luta prosseguisse até que um deles morresse... ou se submetesse ao outro? Sabia o quanto Dois era precioso... e também quanto era genioso e teimoso, dono de um orgulho aterrador... Estava disposto, portanto, a perdê-lo se o jovem vencesse sem tréguas?...

Um guarda engoliu em seco. Um rato passou chiando, de uma cela a outra. Uma aura expandiu-se e retesou o couro de Sete, arrepiou-lhe os pêlos dos braços e do pescoço. Seus olhos de Lua arregalaram-se. Não houve tempo. Arcos de um maravilhoso dourado cambiante uniram os dois corpos e chibatearam pelo chão em direção às grades, afastando os aparvalhados soldados. O som alto zumbiu e as faíscas riscaram em estalos o ar abafado. Os músculos de Sete contraíram-se ao ponto da asfixia. Seu coração parou. A carga corria pelo seu corpo balançando-o e finalmente lançou-o longe e alto.

Um centésimo de segundo congelado na retina absorta do jovem. Dois, erguendo-se, ágil, apesar de tudo, o uniforme recolhendo em proteção os intestinos antes expostos. Então sua própria queda. A espinha aciona-lhe os músculos potentes. Gira o corpo no ar, seu peito inteiro dói e ele não sente mais o pulsar do sangue.

[ ... você entende que está morrendo?... por que não o matou quando teve a chance?... foi uma grande estupidez... percebe agora?... eu não posso te perder... maldito seja... ]

Aterrissa com menos desenvoltura que gostaria, finge bem... mas fato é que logo, não haverá mais vida... Que porra de pensamento tinha sido aquele? Como uma lâmpada prestes a queimar, sua mente oscila, a vista preteando e voltando embaçada para captar o próximo golpe em seu rosto, derrubando-o contra as grades.
- Que erro, vadia... Sem volta, depois de morto... vamos nos divertir juntos... de novo... - a voz do veterano lhe chegava distorcida, e através do borrão de mundo que percebe não pode antecipar seus movimentos.

Puxa o ar com força, afogando-se. Um chute varre-lhe das grades ao chão.
Ele está no fim - veja por si mesmo: o uniforme escorre-lhe lentamente pela pele, dissociando-se dele... Sete está sendo tragado por algo branco e oco, repousante...

Não... apesar da mansidão da morte, há uma gana que não esmorece nele [ ... você não nasceu para isso, miserável... ]. O cheiro de seus dejetos sobe e farpas de lembranças passam através da dissolução de todos os sentidos, de todas emoções... A pupila já parada, fende-se - algo acontece. As caras de sátiro dos guardas que já curtiam os momentos seguintes se retorcem em espanto. As trevas parecem mover-se. Sobem como ondas pelo corpo branco de Sete, espantando o veterano, que não crê em tal resistência.

Aquela batalha já tinha durado mais que o previsto, Dois rosna, acompanhando o borrão pixe que não recobre a nudez do jovem. Sem ter pista do que viria, o assassino investe, chuta-o pelo estômago, erguendo-o num solavanco e gira, a perna desce com uma força absurda.
Partirá sua medula em dois!

Então... tudo preteia. O mais velho gorgoleja sangue, estático. Ainda vê o corpo incrivelmente alvo, coberto de hematomas e muito magro, quase que flutuando à sua frente, inefável e belo como uma pena. Os longos arpões recuam abrindo-se na carne transpassada. Dois abre-se em inomináveis flores escarlates e desaba como um boneco de pano rasgado.

Bestificado, apesar de jamais aparentar, o Comandante volta a si.

A cela enche-se de sons longínquos de passos e vozes aflitas. Sente-se leve. Como se não tivesse matéria. Um rosto de menina, lágrimas...
Tubos e verde... Um garoto branco com um sorriso trapaceiro... Um cristal dormente - uma prisão fora do tempo... Algo familiar e estranho na Lua... Vultos... Grilhões... Algo... como... uma profecia...

Sobre sete, o uniforme negro, aberto como duas grandes asas de penas perfurantes. Ou... como as mandíbulas sedentas da própria Noite, prontas para devorar seu próximo inimigo...

Que visão estupenda - é o que pensa o Comandante - que rapaz impressionante. Subestimara-o.

E quase perdera os dois...



[a Cannibal first meat] - 4

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