terça-feira, 16 de dezembro de 2008

... lições no limiar...



Estava sobrevivendo da forma mais vil... Entre os dentes, os pequenos ossos quebraram, e a garganta saciou-se com o sangue morno que não apagava a sede tremenda... os pêlos faziam cócegas em seus lábios rachados, moídos. Ao menos, tirava o gosto de urina que impregnava sua língua...


Terminou a refeição... Exigiu água, num berro de fera, rouco e poderoso, mas as câmeras de vigilância nada lhe responderam. E ela não veio, outra vez - nunca viera. Sequer alguém desceu para rir... Como sairia dali se ninguém viesse?... Sua testa rolou de uma grade a outra e os olhos piscaram, lentos, entregues a mesma seqüência de memórias... Quantas vezes ele relembrara tudo?... Não sei te assegurar, mas creio que milhares...

A dor não importunava mais. Acostumara-se a ela. Em tantas partes diferentes, de tantas formas diferentes: aguda. Quente. Pulsante. Como uma pressão. Como um serrar. Como um inchaço prestes a explodir. Asfixiante. Nauseante... Passara a ser parte dele, mais um sentido de si mesmo...

Abrira-se com as garras para tentar alinhar os ossos do pulso quebrado, dias atrás... Deixara seu uniforme invadir seus músculos para segurar os fragmentos no lugar... A ferida estava inchada, infecta e pontilhada daqueles cabos negros, que transpassavam-lhe pele e carne... Atado feito um marionete...

A febre o levava a planícies distantes... Sonhava em voar - um corvo, que comeria os olhos daquele desgraçado... Outras vezes, via-se em meio a muita neve, enchia com ela a boca, sentia ela limpar o corpo, e seu frio era tão maravilhoso... corria afundando naquele branco sem fim... - um lobo, que devoraria a todos... A febre era seu sono mais profundo e mais doce...

Tremeu a boca de leve nos calafrios, enquanto assava por dentro, e, como um clarão que se torna muito nítido - o pensamento condensou-se numa idéia. E aquilo avolumou-se atrás de suas retinas, tanto e tanto que seus olhos se arregalaram e as pupilas fenderam-se estreitas. Respirou devagar. Clareou sua mente. Dominou as batidas de seu coração. A face enrigesceu-se naquela máscara fria. Um sorriso muito secreto repuxou os lábios arroxeados, só um pouco.

Mirou a lente da câmera. Ergueu-se. Teve de juntar tudo que podia do controle de sua mente para repuxar o corpo à posição de pé, sem que balançasse, sem que se encurvasse - permaneceu ereto e olhou direto através daquele vidro, daquele diafragma. Como uma punhalada. Deu um instante a si mesmo. Precisava que sua garganta não lhe traísse. Tinha que fazer bem-feito, pois estava apostando, talvez, sua última cartada... Encarou quem quer que fôsse que estivesse sentado, numa bela sala, limpa, arejada, confortável em seu assento macio, simplesmente vendo ele se foder, dia a dia, naquela pocilga...

- Aquele filho da puta que me quebrou... não passa de um merdinha!... erraram se acreditaram que ele é melhor que eu!... o covarde se aproveitou por uma sorte... não conseguiria tocar um dedo em mim, aqui, agora!... não teria esse culhão!... não teria essa vantagem duas vezes!... que viesse!... que trouxesse todo mundo prá ver o que eu faria com ele... cachorro que não serve nem prá acabar com o que começou!... não estou morto! ouviu?!...

Puxou fundo um rugido que abalou o silêncio escuro e pesado daquele corredor.

Apontou o dedo na direção de seu espectador, como se o marcasse.

Pronto.

Os dados estavam lançados...


[A Cannibal first meat] - 2

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